sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Somos um povo manso?

Chega a ser saloia a demonização de que os gregos têm sido alvo em Portugal. Por todo o lado se ouve que Portugal não é a Grécia. E tal afirmação acaba por surgir até dos sectores mais inesperados. Parecemos fazer questão de sublinhar que não somos malandros e maus trabalhadores como os gregos. Ficamos portanto agradecidos que não nos confundam com a rebaldaria que nos dizem lá se passar. Parecemos também querer deixar bem claro que não somos uns desordeiros mal comportados que cercam o parlamento e fazem greves a torto e a direito. Nada disso.

Pelo contrário, parecemos apenas preocupados em demonstrar que reconhecemos ter-nos portado mal, mas que tudo faremos agora para receber uma medalha de bom comportamento. Nada de desordens, grandes protestos ou confusões, porque este é um tempo onde se exige responsabilidade. Parecemos ter interiorizado tão bem a ideia de que andamos a viver acima das nossas possibilidades, que agora assumimos sem sequer questionar que o sacrifício e a penitência são o nosso caminho para a salvação.

As sondagens estão aliás a reflectir bem esta postura maioritária na opinião pública. Depois de 100 dias de ininterruptos anúncios de austeridade, o grau de apoio ao presente Executivo continua de boa saúde. Ou seja, após subidas de impostos a todos os níveis, cortes nas prestações sociais, cortes nos salários, o país parece achar que é este sacrifício presente que nos assegurará um futuro risonho. E mesmo verificando que, na sequência de tais medidas, a economia encontra-se em travagem brusca, os juros da dívida pública continuam em níveis incomportáveis e que os que graves efeitos sociais do actual quadro são já visíveis à vista desarmada, consideramos que é este o caminho que nos curará.

Não é fácil perceber esta lógica dos brandos costumes da opinião pública. Sobretudo quando parecem ter sido há muito ultrapassados todos os limites à dignidade e quando se tornou claríssimo que os sacrifícios não são para todos. Aliás, casos de polícia como o BPN ou a ocultação da dívida por Jardim são rapidamente secundarizados, como se de problemas isolados se tratassem.

Se até agora a compreensão e a lógica do sacrifício têm vencido, começa a ser tempo de esclarecer rapidamente que os portugueses não são um povo manso. Que a sua brandura tem limites. A manifestação nacional de amanhã tem tudo para ser um passo importante neste sentido.


Artigo hoje publicado no Esquerda.net
(Imagem: Sinalizar)

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Fortuna Política

100 dias passados de ininterruptos anúncios de austeridade e sem que se vislumbrem quaisquer efeitos positivos daí provenientes, as sondagens continuam a dar muito boa saúde ao actual Executivo. A mensagem de que nos portamos mal e de que a salvação virá do sacrifício e da penitência tem passado de forma extraordinária. Medeiros Ferreira recuperou ontem na TVI o conceito de "fortuna política". Aplica-se na perfeição a estes primeiros 100 dias.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Uma palavrinha, vá lá

O tempo amolece as vontades, é certo. Mas, neste caso, nós vamos fazer um esforçozito adicional para não deixar que assim seja. Sr. Presidente, continuamos à espera de uma palavrinha sobre a situação da Madeira. Não pedimos uma declaração ao país em prime time. Isso seria pedir muito. Uma palavrita já não era mau.

(Imagem: Cantigueiro)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Angola livre


Ainda não foi desta que os movimentos que defendem a saída de José Eduardo dos Santos e uma abertura democrática em Angola conseguiram uma grande mobilização. De qualquer modo, inspirados pela primavera árabe, a sua força está a aumentar. Como em qualquer eventual processo de democratização, existem duas posturas a ter: assobiar para o lado com a desculpa que estas questões apenas dizem respeito aos angolanos ou; apoiar sem rodeios as forças de democratização do país. Infelizmente, devidos aos fortíssimos interesses económicos, em Portugal reina vergonhosamente a primeira atitude.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

E as vacas riem

Enquanto o país se afunda em buracos encontrados no jardim e se mutila com liberalizações dos despedimentos, Cavaco diverte-se com jogadas de marketing mal estudadas no paraíso açoriano. Ó sr. Presidente, a Vaca que Ri não é dos Açores. Os Açores produzem muitos queijos, mas a vaca que ri não é um deles...

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Epá, nós não somos a Grécia


Perdi a conta às vezes que Passos Coelho sublinhou esta ideia na sua entrevista de ontem. Ideia aliás que atormenta o imaginário nacional. Não queremos ser confundidos com os gregos, que horror. Assim como os irlandeses não querem ser confundidos com Portugal e a Grécia. Assim como os Espanhoís não querem ser confundidos com a Irlanda, com Portugal e com a Grécia. Assim como a Itália não quer ser confundida com Espanha, com a Irlanda, com Portugal e com a Grécia. And so on.

Portanto, a primeira reacção de cada uma das potenciais vítimas desta crise é distanciar-se das restantes. Como se os problemas apontados fossem assim tão diferentes. Como se não soubessem que a queda de um gerará sempre um efeito dominó sobre os outros. Num mundo que fizesse um pouco mais de sentido, se calhar estaríamos sobretudo empenhados em procurar minimizar a culpa dos gregos, em vez de sermos os primeiros a cobardemente lhes apontarmos o dedo. Até porque defendê-los em conjunto com outras potenciais vítimas seria um melhor investimento para salvar a própria pele.
(Imagem: RTP)

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Alberto João Jardim fez isso? Quem diria...



O buraco financeiro que Alberto João Jardim escondeu está de facto a indignar profundamente o país. Sucedem-se as reacções estupefactas e indignadas sobre os 1,6 mil milhões que o governo madeirense encobriu. Num tempo à partida propenso ao surgimento de caças a bruxas causadoras dos grandes males nacionais, Jardim pôs-se a jeito, é certo. Mas é particularmente interessante verificar o espanto vindo de alguns sectores que até hoje assumiram posturas pouco mais do que contemplativas do que se ia passando na Madeira.

Alberto João Jardim não conseguiu a fama que actualmente detém de um dia para o outro. Pelo contrário, tal foi conseguido degrau a degrau, façanha a façanha, dia após dia. E torna-se até redundante estar a detalhar a dimensão da sua “excentricidade”. No que aos domínios financeiros diz respeito, lado a lado com os empreendimentos que há muito deixam boquiabertos os visitantes do arquipélago, também não são recentes as rotineiras exigências de perdão da dívida madeirense, que sempre foram obtendo feedback positivo dos Executivos de diferentes cores. As façanhas de Jardim nestes domínios não são portanto uma novidade.

Mas é sobretudo a nível político que a (má) obra de Jardim se faz notar. Desde expulsão de jornalistas em conferências de imprensa, boicotes diversos a um jornal diário que se recusa a cair sob a sua influência, inaugurações aos montes em tempo de campanha eleitoral, inúmeras desconsiderações com a Assembleia Legislativa Regional e seus deputados, recusa em aplicar a lei das incompatibilidades dos titulares de cargos públicos, recusa em receber a Comissão Nacional de Eleições, insultos variados a detentores de cargos políticos nacionais, entre muitos outros exemplos.

Curiosamente, tudo isto sucedeu sem que se tenha vislumbrado qualquer oposição séria por parte do seu partido. Pelo contrário, a desculpabilização da sua “exotismo” é uma constante no partido laranja. A título de exemplo, importa não esquecer que foi durante a presidência do PSD de Marcelo Rebelo de Sousa que João Jardim ascendeu a vice-presidente do partido e posteriormente a presidente da mesa do congresso. Por seu turno, mesmo aqueles que fizeram da seriedade a sua bandeira, como Marques Mendes, Ferreira Leite ou mesmo Passos Coelho, não lhe resistiram assim que assumiram as rédeas do partido. Veja-se também a passividade paradigmática de Cavaco Silva, apelidado de Sr. Silva por Jardim antes de ascender a Belém, mas que pouco depois da eleição se deslocou à Madeira para abençoar o líder madeirense.

E infelizmente não é só nos círculos laranja que Jardim é relativizado. Mesmo na oposição, tal tem acontecido nos sectores menos esperados. Importa recordar com estranheza a contemplação com que o então Presidente Jorge Sampaio sempre olhou para Jardim, sem nunca ter exercido a sua magistratura para retirar consequências dos seus actos. Vale também a pena recordar o episódio em que, numa visita à Madeira enquanto presidente da Assembleia da República em 2008, Jaime Gama elogiou veementemente Jardim e a sua obra na região, perante a estupefacção do país.

Jardim é o resultado de uma passividade transversal. Não deixa portanto de ser curioso que esta grande indignação contra o presidente madeirense surja apenas quando a sua acção ameaça gravemente os bolsos dos portugueses. Como até então era apenas uma ameaça ao regular funcionamento das instituições democráticas, aí era chato, mas tolerava-se. Por outro lado, a estupefacção de muitos sectores perante o que agora se descobriu é engraçada. Como se fosse possível estar-se surpreso com uma “marotice” vinda de alguém que não se cansa de mostrar que o céu é o limite. A estupefacção destes sectores tem um nome: profundo embaraço.


Artigo publicado hoje no Açoriano Oriental

domingo, 18 de setembro de 2011

Disfarçar o embaraço

É sempre interessante ver o ar surpreendido e preocupado com que Marcelo Rebelo de Sousa comenta as aventuras e desventuras de Alberto João Jardim. Já agora, importa não esquecer que foi durante a presidência do PSD de Marcelo que Jardim ocupou os mais elevados cargos no seio do partido a nível nacional. Foi vice-presidente da comissão política e presidente da mesa do congresso. Curioso, não é?

Problema ou Oportunidade?




Passos Coelhos pode encarar o buraco da Madeira como uma grande chatice, quer pelo embaraço que gera a nível nacional, quer pelo facto de abanar o poder laranja na região à beira das regionais. Mais inteligente seria se olhasse para este buraco como uma oportunidade única do PSD e o seu Governo se livrarem do tremendo embaraço que é Alberto João Jardim. Sairia reforçado se optasse por esta última abordagem.
(Imagem: Arrastão)

sábado, 17 de setembro de 2011

Ecos do Fado na Arte Portuguesa


Hoje foi o último dia da exposição e de facto só hoje passei por lá. Com entrada pela Rua do Arsenal, junto ao Terreiro do Paço, lá estavam exemplares de todos os blockbusters da pintura portuguesa do século XIX ao século XXI: de Amadeo de Souza-Cardoso a Júlio Pomar, de José Malhoa a Eduardo Viana, ou os (muito) mais recentes João Vieira ou Joana Vasconcelos. Via-se que era direccionada para o público turístico, mas tal não lhe retirava a qualidade, pelo contrário. Uma boa iniciativa conjunta de diversas entidades. Espero que não tenhamos de aguardar para o próximo Verão para ver outra exposição temática semelhante.
(Imagem: Mar À Vista)

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O BPNómetro




Num momento em que os anúncios de austeridade se sucedem a um ritmo alucinante, é natural que um efeito semi-paralisante se apodere da opinião pública. Os aumentos de impostos e os cortes sucedem de tantos lados, que a capacidade de discernir a dimensão de uma medida, o seu impacto ou a sua real justificação torna-se difícil. Somos assim empurrados a considerar que um aumento na taxa máxima de IRS contrabalança o fim da comparticipação da pílula, ou que o imposto especial sobre os subsídios de Natal tem a capacidade de gerar receitas com valores semelhantes aos cortes anunciados nas chefias da Administração Pública. Ou seja, tudo é grave e doloroso, por isso somos levados a pensar que quase nada acaba por o ser verdadeiramente.

Fazem falta instrumentos e pontos de referência que nos permitam aferir realmente o dimensão das medidas tomadas e a dimensão dos problemas ou das “gorduras” que pretendem atacar. Neste sentido, que tal ter como referência aquele pequeno buraco de 2.400 milhões de euros do negócio BPN?Buraquito este cuja gravidade tem sido estranhamente esquecida pelo Governo, pela Presidência da República e por uma série de outros sectores da sociedade portuguesa. Eis o BPNómetro, o instrumento que lhe permite descodificar a austeridade à luz do buraco BPN.

Testemos então o BPNómetro com o duríssimo imposto especial sobre o subsídio de natal. Aquele que compreensivelmente gerou tantas resistências dados os efeitos que terá nos orçamentos familiares. O Governo prevê arrecadar com tal medida 1.000 milhões de euros. Ou seja, está muito longe de tapar sequer metade do buraco BPN.

Vejamos agora o aumento médio de 15% dos transportes públicos em vigor desde 1 de Agosto. Tal medida gerará uma poupança de 2,5 milhões de euros. Ou seja, dará para tapar pouco mais de 0,1% do buraco do BPN. E que tal usar o BPNómetro para medir aferir o alcance da poupança que resulta do fim da comparticipação da pílula, da vacina do cancro do útero, de medicamentos antiasmáticos e broncodilatadores? Estima-se em 19 milhões de euros. Ou seja, menos de 1% do buraco BPN.

Mas ok, voltemos agora a medidas mais exigentes. Vejamos o super-mega pacote esta semana anunciado para reduzir em 27% as chefias na Administração Pública central e extinguir 162 organismos públicos. Poupança estimada em 100 milhões de euros. Ou seja, o esperado plano para eliminar as gorduras do Estado servirá para pagar menos de 5% do buraco BPN.

Em suma, pegando apenas nos exemplos acima, o BPNómetro indica-nos que o imposto sobre o subsídio de natal, os aumentos nos transportes, o fim das comparticipações da pílula e de outras despesas na saúde e os mega-cortes na função pública gerarão receitas e poupanças suficientes para cobrir metade do buraco do BPN… Repito: não chega a metade do buraco. Em suma, o BPNómetro, este poderoso e infalível instrumento científico, indica-nos que o grande problema deste país “se calhar” não é uma administração pública gorda e um estado social incomportável. Devem ser outras coisas quaisquer, cujos nomes perdoem-me mas agora não me ocorrem.


Artigo hoje publicado no Esquerda.net

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O grande mal deste País


O Governo vai poupar 100 milhões com o corte em 27% dos lugares de chefia na administração pública central e com a extinção de 162 organismos, anunciou hoje Passos Coelho. Brutal... Portanto, poupará com esta mega-super-operação de corte na malvada administração pública o suficiente para pagar menos de 5% da operação BPN (estimada, importa não esquecer, em 2400 milhões). O grande mal deste país está na administração pública, sem duvida... Mas alguém ainda duvida?

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Então e a hegemonia cultural, hein?




A propósito do 10 aniversário do 11 de Setembro, diversas análises surgiram sobre a perda de influência americana nesta última década. Das mal sucedidas intervenções no Iraque à grave crise económica para onde arrastaram meio mundo, muitos consideram que esta foi a década em que América perdeu a hegemonia para os outros gigantes que estão a surgir: sobretudo China, mas também India ou mesmo Brasil. Tal perda de hegemonia reflecte-se sobretudo em termos económicos.

No entanto, tais visões parecem não estar a levar em linha de conta que a hegemonia nos dias que correm assenta também a nível cultural, exportando modelos de vida, valores, visões sobre o mundo, definindo padrões de consumo, etc. Neste sentido, arriscaria que dizer que se calhar nunca como hoje a hegemonia americana se fez sentir com tanta intensidade. Do jovem de Buenos Aires ao quadro médio chinês, os niveis de exposição à cultura americana são hoje avassaladores. Da televisão à Internet, os meios globais hoje disponíveis levam naturalmente a tal efeito. Desengane-se portanto quem acha que os "states" estão arrumados.

Indeed




"A grande sombra de António José Seguro neste Congresso não se chama Francisco Assis, mas sim António Costa" António José Teixeira ontem na SIC Notícias.

É a comunicação, pá




O momento em que Seguro se deslocou aos bastidores da comunicação social do congresso foi particularmente interessante. Sócrates nunca fez grande questão de disfarçar a atenção que prestava aos domínios da comunicação. E ficou rotulado como tal. Mas este gesto de Seguro demonstrou que não pretende ser um rústico nestes domínios.

domingo, 11 de setembro de 2011

A Mudança




Como já muitos disseram, este foi o Congresso onde a matriz ideológica voltou a assumir particular relevo. E estranho seria se assim não acontecesse. Trata-se aliás de uma tendência inscrita em todos os manuais: quando estão na oposição, os partidos do centro assumem imediatamente uma maior densidade ideológica.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O Problema dos Gestores

A propósito do fim da comparticipação da pílula e suas quase certas consequências, não deixa de ser relevante o facto de vir de um ministério liderado por Paulo Macedo. Como reconhecido gestor que é, administrar um Ministério da Saúde, uma petrolífera ou uma multinacional de batatas adivinha-se muito semelhante.


quarta-feira, 7 de setembro de 2011

E os aumentos racionais na receita, não exigem tempo?

Vitor Gaspar afirmou que "Cortes racionais na despesa exigem tempo". É sempre interessante analisar a inocuidade de grande parte dos chavões políticos.

(Imagem: Gata Escondida)

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Atenção: Perigo de Purgas

Em tempo de reentré, importa antes de mais notar que este ano ficará marcado precisamente por esta não existir. Não houve de facto interrupção da actividade política. Pelo contrário, o país até pode ter ido a banhos, mas novas medidas de austeridade foram anunciadas a um ritmo diário. Têm sido tantas e com tão vasto alcance que a opinião pública parece anestesiada perante o que está a acontecer. O estado de graça do actual Executivo tem-lhe permitido seguir à risca a velha máxima de fazer o mal depressa (e o bem, a ser feito, devagar).

O ataque ao défice tem sucedido, até ao presente, sobretudo com medidas de aumento da receita (vulgo impostos). Mas o corte na despesa, naturalmente mais complicado, começa também a dar os primeiros sinais. A extinção, fusão ou privatização de entidades da esfera pública, a redução do número de funcionários públicos e suas regalias e o recuo do Estado nos sectores sociais correspondem às grandes categorias nestes domínios. Importa sublinhar que tudo é feito em nome do corte no desperdício, das gorduras do Estado, como alguns chegaram a apelidá-lo. Mas à medida que se avança neste sentido, não deixa de ser curioso, mas sobretudo preocupante, o ambiente de purga que se instalou. O supremo álibi passou a ser a existência de abusos no caso das prestações sociais ou de mau funcionamento no caso das instituições públicas.

Peguemos então neste último exemplo. Subitamente, qualquer entidade pública com resquícios de mau funcionamento pode estar na mira da privatização, extinção ou ser alvo de cortes sérios. E tal acontece surpreendentemente sem gerar grande oposição por parte da opinião pública, que cai na tentação de considerar que tal constitui uma justa punição pelo “mau comportamento” das entidades em causa até ao presente. No fundo, num momento em que os cortes sucedem vindos de todas as direcções, acaba-se por esquecer a utilidade pública das entidades (p.ex. carácter social, estratégico para a economia ou para a coesão do território), para logo se admitir uma das referidas sentenças.

Veja-se o caso de algumas empresas públicas no sector dos transportes como a ANA, a Carris ou a CP. No caso da primeira, assume-se que os seus administradores ganham demais, no caso da segunda que o serviço prestado é deficitário e despesista e no caso da terceira junta-se a tais características os ordenados dos seus maquinistas constamente em greve. Mas em vez de se exigir a correcção de tais situações, caso se assuma a importância estratégica de tais empresas no domínio público, considera-se um problema menor ou um castigo merecido a privatização das mesmas.

Tomemos também como exemplo a prometida diminuição das emissões da RTP Açores e da RTP Madeira. São conhecidos alguns dos problemas de tais estações. Obterem níveis de audiência que justifiquem o seu financiamento revela-se um dos seus pontos críticos. Mas no clima actual, rapidamente se esquece a sua missão e importância nos contextos regionais para rapidamente se considerar que a diminuição das emissões é a consequência merecida por não estarem a cumprir bem o seu papel.

É neste contexto de estranhos paradoxos que uma grande vaga de políticas de índole liberal se tem desenvolvido sem ainda ter encontrado resistências significativas. E é sabido que mais do que procurar uma redução da despesa, a diminuição da intervenção do Estado em diversas esferas económicas e sociais assenta em claras opções ideológicas com limitado impacto nas contas públicas. Beneficiando de apatia, resignação, mas também de muita desorientação, o actual Executivo vai conseguindo dar sólidos passos para desmantelar o modelo de Estado Providência que, bem ou mal, entre nós é preconizado há décadas.



Artigo publicado hoje no Açoriano Oriental

A Beatificação da Crise

A política da austeridade aí está, com novas medidas anunciadas diariamente. O Verão não fez abrandar o ritmo. Pelo contrário, a tradição de silly season serviu para que se avançasse com ainda mais convicção. E quando tudo parece conjugar-se para que se consiga de facto deitar abaixo com simples despachos o que levou décadas a construir, duas dimensões que se interligam parecem ganhar particular destaque.

Por um lado, um alibi que tudo consegue justificar: o memorando da troika. Ele é privatizações no pior contexto possível e em sectores em que as grandes potências europeias continuam a manter uma forte presença pública. Ele é aumento de impostos sem pestanejar. Ele é revisões do conceito de serviço público em domínios centrais do Estado Providência. E como se tudo isto não fosse já suficientemente mau, fazemos questão de ir ainda mais além do que o previsto no memorando, condenando-nos a um triste papel de bom aluno. O próprio professor parece incrédulo perante o nosso voluntarismo. Comentários para quê?

Mas o alibi troikiano acima referido tem beneficiado de uma preciosa ajuda. Como já tem vindo a ser sublinhado por muitos, um estranho sentimento de sacrifício redentor parece ter sido absorvido por uma parte considerável da opinião pública. Numa lógica muito cristã, assume-se que o sacrifício é o caminho necessário para o perdão pelos erros cometidos e para a recompensa futura. Estivemos a viver no pecado durante demasiado tempo, sendo portanto natural o presente castigo divino. Devemos assim abraçar políticas de sacrifício e humildade para que os amanhãs nos sejam mais risonhos. Esta espécie de religiosidade económica, que não por acaso algum clero mais tonto logo se dispôs a corroborar, parece ter tomado conta de diversas franjas sociais.

A coberto desta beatificação da crise, a mais ambiciosa vaga liberal de que há memória está em curso e à vista de todos. E são inumeras as medidas que, mais do que direccionadas para a redução da despesa pública, são sobretudo norteadas por visões profundamente ideológicas sobre o papel do Estado na sociedade e na economia. Que o Outono Quente que se adivinha sirva para descongelar todos os redutos de apatia social perante o que se está a passar. Porque, como todos sabemos, o país já pagou demasiado caro por visões beatas do mundo.


Artigo publicado sexta-feira no Esquerda.net

O Enterro dos Bons Velhos Tempos

Atravessamos, como é sabido, uma crise cujo paralelo não encontramos nas últimas décadas. As suas consequências há muito deixaram os domínios semi-transcendentes para o cidadão comum como o sobe e desce das bolsas, as taxas de juro da dívida soberana a baterem novos recordes ou os cortes nos ratings. Pelo contrário, as consequências são hoje tangíveis pelo mais comum dos mortais. Desde cortes nos salários ao desemprego a aumentar a olhos vistos nas diversas camadas da população, desde a subida das taxas de juro ao aumento vísivel da carga fiscal.

E para lá das condições objectivas, é também no domínio das expectativas e no clima de (des)confiança generalizada quanto ao futuro que este mau momento economico-social se faz sentir com particular intensidade. Sobretudo porque assistimos a uma mudança de paradigma no que à evolução das condições de vida diz respeito: o ontem foi provavelmente melhor do que o amanhã. Ou seja, tal como tem vindo a ser sublinhado por muitos, há a forte possibilidade de as gerações vindouras viverem pior do que as suas antecessoras.

Nos últimos 30 anos, ou mesmo 50 anos, vivemos períodos de crescimento económico nacional quase ininterruptos. Era legitímo e mais do que evidente que os filhos viveriam melhor do que os pais. Ou seja, a melhoria progressiva das condições de vida era uma premissa perfeitamente interiorizada no subconsciente de cada um. Mais e mais pessoas integrariam a classe média, tendo acesso a bens e comodidades outrora acessíveis a apenas alguns. Desde ter casa própria, à capacidade de ir melhorando a gama do seu automóvel, passando por férias no estrangeiro ou à possibilidade de ter o último grito em electrodomésticos. Nos referidos "bons velhos tempos", era assumida a quase impossibilidade das pessoas regredirem profissionalmente em termos salariais. Pelo contrário, com o passar dos anos, o vencimento de qualquer funcionário tenderia a aumentar, premiando o seu empenho e antiguidade. Por outro lado, apesar de alguns recuos, era também assumida a progressiva capacidade do Estado em dar resposta às necessidades sociais da população.

Recordando o que há apenas dois ou três anos atrás eram quase verdades de senso comum, apercebemos-nos bem da gravidade da situação em que nos encontramos actualmente. Uma situação em que o desejo de progredir foi substituído pelo desejo de não regredir muito. Exagerando propositadamete um pouco, deixou-se de querer progredir profissionalmente, considerando já um sucesso manter o posto de trabalho. Deixou-se de querer ter uma melhor rede pública de escolas, para se passar a querer ter a rede possível. Deixou-se de querer ter um sistema de segurança social que faça justiça ao seu nome, para se passar a contentar com um sistema que acuda apenas nos casos de vida ou de morte. Escusado será sublinhar as consequências negativas desta mudança de paradigma.

No entanto, curiosamente, parece ainda vigorar a convicção de que vivemos tempos recessivos passageiros. Que tudo voltará com maior ou menor demora à normalidade do antigamente que agora tão douradamente recordamos. O problema é que tal desejo parece ignorar que grande parte das reformas em curso não têm tal intuito. São aliás implementadas no sentido inverso, inspiradas por ideias políticas muito críticas e dispostas a varrer de vez com o modelo de Estado Providência a que nos habituámos nestes últimos anos. Eis o pequeno pormenor que parece estar a escapar à generalidade da opinião pública. As reformas em curso procuram um caminho sem retorno.
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Artigo publicado a 23 de Agosto no Açoriano Oriental

Mais Transparência sff

A publicação das nomeações dos gabinetes governamentais num único local online, permitindo a sua fácil consulta, tem-se afirmado como medida bandeira da tranparência governativa que o actual Executivo diz assumir como prioridade. No entanto, o teor da medida tem vindo a ser ofuscado por notícias excessivamente centradas na nomeação A ou na quantidade de nomeações feitas pelo Ministério B. No Expresso da semana passada, Pedro Adão e Silva (PAS) falava inclusive numa transparência que parece apenas promover o voyeurismo e a desnecessária intromissão na vida privada de quem assume responsabilidades governativas. Sublinha ainda que tal transparéncia das nomeações estava a desviar a atenção da opinião pública dos domínios que mereciam esses sim grande transparência, como as privatizações, por exemplo.

A opinião de PAS acerta a, nossa ver, em cheio na dimensão de propaganda que não raras vezes envolve as medidas de transparência governativa. Ou seja, a coberto da transparência em alguns domínios, acaba-se por conseguir erguer verdadeiras cortinas de fumo noutras áreas da governação. Acrescentaríamos até que a forma propositadamente desorganizada como algumas destas medidas são promovidas acaba por conseguir gerar uma ilusão de transparência. Veja-se por exemplo a forma como as nomeações governamentais são expostas. A não apresentação dos currículos dos nomeados, a falta de clareza quanto à inclusão nos vencimentos de complementos como os subsídios de representação ou a ausência de listagens que permitam uma fácil comparação da informação apresentada, são apenas alguns exemplos.

Mas se os pontos acima são exemplos de algumas limitações nestes domínios, mais do que desvalorizar as práticas de transparência seguidas, deverão sobretudo levar-nos a ser mais exigentes com este tipo de medidas. Ou seja, uma vez que o Governo tão prontamente se dispôs a fornecer informação sobre as nomeações governamentais, do que está à espera para o fazer nos processos de privatizações que se avizinham? E a nível da dívida pública, do que está à espera para avançar com uma auditoria nestes domínios?

A transparência governativa é um dos baluartes das tão actuais teorias da Administração Aberta. E os seus princípios são dificilmente discutíveis: o direito democrático dos cidadãos acederem a informação que lhes permita melhor acompanhar e auditar a actividade governativa. Neste sentido, as medidas neste domínio deverão ser acompanhadas, no momento actual, com particular atenção e exigência. E tratando-se de uma dimensão que tem vindo a obter um tão grande destaque e aplauso generalizado, a esquerda não pode deixar que seja a direita política a apropriar-se da mesma. Até porque sejamos claros: dotar os cidadãos de melhores instrumentos para participar na actividade governativa enquadra-se muito melhor nos ideários e projectos da esquerda do que nas visões e concepções da direita política. .

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Artigo publicado a 21 de Agosto no Esquerda.net