terça-feira, 26 de novembro de 2013

Roubar o Futuro


Numa iniciativa que reuniu personalidades da esquerda, mas também do centro político, Mário Soares voltou a alertar para a urgência de se mudar de rumo, uma vez que “a violência está à porta”. A idade, estatuto e estilo de Soares permitem-lhe ter este tipo de intervenções, que originaram diversos protestos da direita e de responsáveis governamentais dada a eventual “legitimação da violência” que as mesmas podem encerrar. Independentemente da indignação perante as declarações, o que é facto é que os protestos destes últimos anos apresentam níveis de tensão quase desconhecidos até agora em Portugal. As imagens de nervosismo e até alguns confrontos em frente à Assembleia da República tornaram-se quase recorrentes. 

Por outro, e isto não se tratou de um mero pormenor, na mesma noite em que Soares fazia este aviso, uma manifestação dos profissionais de segurança invadiu as escadarias do Parlamento. Ou seja, mesmos os setores profissionais considerados naturais respeitadores da ordem começam a dar graves sinais de nervosismo. O que deixa particularmente apreensivos os governantes e a própria direita política. Se não podem contar com corpos de segurança como os polícias ou os guardas prisionais para manter a ordem, contarão com quem? Sintomático. O cenário começa a ficar deveras complicado.

Mas independentemente da crise e da austeridade se fazerem sentir nos mais diversos setores sociais, os setores jovens da população estão com certeza entre os que mais estão a sentir na pele o momento que atravessamos. A mais qualificada geração de sempre vê, neste momento, o futuro ser-lhe descaradamente roubado, hipotecado, suspenso. As mais diversas peças jornalísticas vão-nos retratando as histórias pessoais que vão acontecendo um pouco por todo o país. E cada um de nós começa a conhecer uma meia de casos como estes, ora de amigos, ora de familiares.

Jovens que terminaram as suas licenciaturas e mestrados e pura e simplesmente não conseguem entrar no mercado de trabalho. A economia atual apenas lhes consegue oferecer precariedade em troca do esforço e recursos que empenharam aquando da sua frequência do ensino superior. E se tal sentimento de futuro roubado se faz sentir entre os jovens mais qualificados, a situação complica-se ainda mais entre a juventude que apenas terminou o secundário ou ficou-se pelo 10 ou 11º ano. A geração “nem-nem” – nem trabalho, nem educação/formação – que não consegue abandonar a casa dos pais porque não consegue ter recursos para se sustentar autonomamente, está a engrossar a olhos vistos. As estatísticas oficiais começam aliás a demonstrar o número crescente de jovens nesta situação.

Soares acenou com a ameaça de violência e muitos sectores ficaram indignados. Parecem esquecer que foi precisamente esta situação de desemprego entre a juventude mais qualificada de sempre que esteve na origem da vaga de movimentos internacionais como a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street ou “os Indignados”. E não está aqui naturalmente em causa a utilização ou não da violência por estes movimentos, que no mundo ocidental mostraram-se até particularmente pacíficos, mas sim do papel transformador que poderão assumir. Uma juventude “desocupada” e “insatisfeita” deve ser naturalmente motivo de preocupação de todos, sobretudo dos que parecem tão convictos da receita atual. Confesso que sou dos primeiros a temer pela consistência dos consensos alargados como os que vimos na Aula Magna na semana passada. Mas eles são sem dúvida um sinal de que, independentemente da filiação ou convicção política, são cada vez mais os que estão dispostos a lutar contra quem lhes anda a roubar o futuro.

Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental
Imagem: HR Portugal

Os Palermas


Acho de uma terrível pequenez ver nas redes sociais, no café da esquina, no taxi cá do burgo, quem se congratule com a aplicação das 40 horas aos funcionários públicos. Tipicamente com argumentos do tipo "acabaram-se os privilégios, agora trabalhamos todos o mesmo" ou, em causa própria, "eu já trabalhava 40 horas, isso não me afeta".

Se repararem, são os mesmos que aplaudiram a vinda da troika com o argumento de que andávamos a viver acima das nossas possibilidades. Os mesmos que achavam que a dívida seria resolvida cortando nas gorduras do Estado. Os mesmos que acharam justos os cortes nos subsídios aos funcionários públicos, essa cambada de privilegiados. 

Os mesmos que agora até já acham que a troika são uns malvados e que este Governo afinal é uma porcaria. Os mesmos qiue acham que já chega de apertar o cinto e que afinal importa apostar no crescimento. Os mesmos para quem o Sócrates passou de besta a bestial num estalar de dedos. Comentários para quê?

domingo, 24 de novembro de 2013

Uma Minoria, um Governo, um Presidente


No que ao domínio das principais instituições políticas diz respeito, não haja dúvida de que estamos a viver o famoso sonho de Sá Carneiro. Por uma conjugação diversa de fatores, a direita política conseguiu finalmente dominar o Parlamento, o Governo e a Presidência da República. A parte que Sá Carneiro não previu com certeza no seu sonho é que este seria o mais mal-amado Governo da história da democracia portuguesa, o mesmo acontecendo com o Presidente da República. A maioria que elegeu ambos tornou-se rapidamente numa minoria em termos eleitorais. E o consenso que se fez sentir na noite de ontem na Aula Magna não deixa dúvidas a este respeito. Chegámos de facto ao momento em que passou a ser razoável pedir-se a demissão simultânea dos responsáveis que ocupam as duas principais instituições políticas do país.

A raiz da ilegitimidade de ambas resulta da conjugação de evidências bastante claras. Em primeiro lugar, com mais ou menos volatilidade eleitoral, é hoje certo que as maiorias eleitorais que suportaram o presente Governo e elegeram Cavaco Silva há muito caducaram. Ou seja, os cidadãos hoje dificilmente voltariam a atribuir uma maioria ao PSD/CDS nas legislativas ou atribuiriam a Presidência a Cavaco. Como é evidente, poder-se-á argumentar que as instituições políticas não podem ficar permanentemente reféns das intenções de voto dos cidadãos. Essa é aliás a razão da existência de mandatos, no fim dos quais os cidadãos revalidam ou escolhem uma nova maioria. Ok… O problema é que as evidências da ilegitimidade não se ficam por aqui.

A presente maioria governa contrariando pontos centrais do programa eleitoral que apresentou a eleições. Prometeu que não ia aumentar impostos, que não ia reduzir salários, que apenas se ficaria pelas gorduras do Estado. Todos se lembram também de Cavaco a dizer há dois anos atrás que tínhamos chegado ao limite dos sacrifícios que podiam ser pedidos aos portugueses. Os resultados estão à vista, encontrando-se as naturais justificações para não se cumprir o que se prometeu. Assume-se assim que o programa eleitoral não é um contrato entre eleitos e eleitores, mas sim uma mera proclamação de intenções que pode ser colocada na gaveta caso as circunstâncias, os imponderáveis e companhia assim o determinem.

Acrescentemos então uma terceira evidência de ilegitimidade do atual Governo e do atual Presidente da República: a tendência de ambos para as inconstitucionalidades. Temos um Governo que bateu com certeza todos recordes na apresentação de propostas inconstitucionais. Temos também um Presidente cuja vontade de manter a estabilidade política o fez esquecer também de forma recordista o seu papel enquanto garante da Lei Fundamental.

Não é pois de admirar o consenso em torno da necessidade de mudança de ciclo político. Um consenso que inclui hoje os mais insuspeitos sectores. É certo que os consensos demasiado alargados são sempre de consistência duvidosa. Mas a situação tornou-se tão urgente que seria irresponsável ser-se demasiado exigente nestes domínios.

Artigo publicado na sexta-feira no Esquerda.net

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Ronaldo, o humilde


Em dia de glória de Cristiano Ronaldo, recordo crónica de Ricardo Araújo Pereira publicada há dois anos atrás na Visão:

"Cristiano Ronaldo acaba de ganhar mais um prémio importante e, no entanto (ou por causa disso), muitos estrangeiros odeiam-no, e alguns portugueses toleram-no com aquele desprezo manso que se dedica aos rústicos. Dizem "Cristiano Ronaldo" articulando todas as sílabas com escárnio, sublinhando toda a cristianoronaldice do nome. Essa gente maldosa sabe o que faz: o nome foi a única vantagem com que Cristiano Ronaldo nasceu. É um nome que indica ao seu proprietário a carreira que deve seguir. Um nome psicotécnico: um arquitecto Cristiano Ronaldo sabe que nunca vencerá o Pritzker, e um engenheiro Cristiano Ronaldo nunca será quadro de topo da Mota-Engil - a menos que tenha sido ministro das Obras Públicas, mas infelizmente o cargo de ministro também está vedado a Cristianos Ronaldos, como é óbvio. Não, assim que um miúdo recebe o nome de Cristiano Ronaldo, pode começar a engraxar as chuteiras: já sabe que vai ser jogador de futebol.

Foi a única vantagem com que Cristiano Ronaldo nasceu. Tudo o resto foi conseguido por ele. É por isso que, ao contrário do que parece ser a opinião geral, considero que Cristiano Ronaldo é modesto e casto. Modesto e casto, digo bem. E justifico: Ronaldo nasceu, há 26 anos, num lugarejo esquecido da Madeira. À custa exclusivamente do seu esforço, conseguiu ser considerado o melhor do mundo no seu ofício. É isso que faz dele modesto. No lugar dele, tendo feito os sacrifícios que ele fez e obtido o que ele obteve, eu teria mandado fazer um cartaz, todo em néon, com os dizeres "Eu sou o grande Cristiano Ronaldo" e uma seta fluorescente a apontar para mim, pendurava-o ao pescoço e não saía de casa sem ele. Que ele, de vez em quando, dê uma entrevista em que arrisca um tímido elogio a si mesmo, para mim, é sinal de humildade.

Além disso, recordo que Ronaldo tem 26 anos. Parece que se dedicou em exclusivo a uma russa quando tem 400 russas, 650 suecas, 890 finlandesas - e por aí adiante, por esse atlas afora - a baterem-lhe à porta. Qualquer rapaz normal de 26 anos que já tivesse ganho o suficiente para nunca mais precisar de trabalhar na vida faria uma curta interrupção sabática de 40 anos no futebol para se dedicar em exclusivo às estrangeiras e ao álcool, como muitos antes dele tiveram o discernimento de fazer. Entre a pândega e o trabalho, Cristiano Ronaldo optou por meter na cabeça que vai bater todos os recordes anteriormente estabelecidos pelos melhores jogadores da história, e parece bem lançado para o fazer. Escolheu mal, evidentemente, até porque aos 26 anos não temos ainda a maturidade para distinguir aquilo que é mais importante na vida, e os cantos de sereia da ética do trabalho conseguem fazer com que muito jovem imaturo abandone uma vida de libertinagem para cair tragicamente nos braços da competência profissional. Comparado com o que podia ser, Cristiano Ronaldo é um monge. Há padres mais devassos do que ele. Felizmente, eu sou capaz de perdoar as falhas de carácter mais graves, e não o admiro menos por causa disso."

Livre - Notas Soltas sobre o novo partido

  1. Há já algum tempo que se adivinhava este passo de Rui Tavares, um tipo inteligente que, não haja dúvidas, tem estado no lado certo da barrricada. Com algumas posições menos felizes, é certo, mas.. ninguém é perfeito.
  2. Não deixa de ser sintomático que esta esquerda que quer unir a esquerda tenha sentido a necessidade de formar um novo partido de esquerda;
  3. Existe espaço político para o surgimento deste tipo de partido. A zona que começa na ala esquerda do PS e abranje a ala menos radical do Bloco sempre deu mostras de ter um grande potencial a este respeito; 
  4. As eleições europeias são o momento perfeito para lançar este tipo de partido. São as menos exigentes para as forças políticas (sem necessidade de estruturas locais ou regionais). Uma lista de 20 e poucas pessoas, algumas boas ideias e capacidade de chegar à comunicação social permitem já que se possa fazer um brilharete;
  5. Se o objetivo do novo partido for conseguir um ou dois lugares nestas eleições, diria que não é nada transcendente. Como é evidente, o problema surgirá depois, com a necessidade de formar e olear uma máquina partidária mínima. De qualquer modo, nos dias de hoje, mais vale apostar em fenómenos com uma durabilidade incerta do que em grandes movimentos organizados que, certamente, não passarão do wishfull thinking;
  6. Um partido que pretende estruturar-se sobretudo à volta de uma pessoa têm hipóteses muito limitadas de sobrevivência. Se existem outros grandes rostos por detrás do movimento, convém que se assumam rapidamente;
  7. A esquerda tem destas coisas: a vontade incessante de começar de novo, de pensar que agora é que é, agora é que vamos lá. A formação constante de novos partidos mostra a vitalidade da esquerda, mas mostra sobretudo a sua dificuldade estrututural em se entender.
  8. À partida, tenho uma visão bastante cética relativamente a este novo fenómeno, pelas diversas questões acima enumeradas. Veremos como evoluirão os acontecimentos.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Oh não! O abominável César das Neves atacou outra vez!


Desta vez ficámos a saber que baixar a idade da reforma é "suicída" e que aumentar o salário mínimo é "estragar a vida aos pobres". É sempre interessante constatar o quanto criaturas como o Abominável vivem tão fora da realidade. Não só têm uma dificuldade tremenda em reconhecer a existência de vida para lá da cartilha que veneram, como conseguem demonstrar sem um pingo de vergonha na cara a selvajaria social em que acreditam. Trata-se de uma criatura muito perigosa, sem dúvida.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Boa sorte...


A presença online veio de facto colocar em causa o modelo de financiamento dos jornais. Não haja dúvidas a este respeito. E tal tem-se feito sentir em todo o mundo, em todos os títulos de referência, procurando-se há muito encontrar modelos alternativos que assegurem receita para uma imprensa que se quer de qualidade.

De qualquer modo, a opção do Público de passar para um modelo pago, de 10 € por mês após os 20 primeiros textos lidos, é arriscada. Muito arriscada mesmo. Certamente terão feito as suas pesquisas de mercado, mas parece-me excessivamente otimista pensar que os leitores passem a pagar 10 euros por mês por conteúdos que tinham na sua maioria de forma gratuita. 

Em primeiro lugar, porque a vastissima maioria dos leitores da edição online não lêem os artigos de fundo, mas sobretudo as notícias Lusa que, podendo encontrar no jornal do lado, preferem o Público por lhe reconhecerem qualidades diversas. Terão agora todas as razões para procurarem tais notícias no jornal do lado. Por outro lado, se o objetivo era começar a obter receita, seria necessário um preço bastante mais competitivo para evitar uma debandada. Diria que nunca superior a 3 € para poder aceder a um pouco mais do que até agora acediam gratuitamente e algo mais para ter um acesso ilimitado. A ver vamos...

PS: Considerar que esta campanha pode ser conduzida com o slogan "Público sem limites" parece-me um pouco tonto.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Típico


Taxista: "Where are you from?"
Eu: "Portugal"
Taxista: "Ah! Cristiano Ronaldo!"

Tive o presente diálogo ontem, quando acabara de chegar a Amã, Jordânia. Mas já o tive em quinhentas outra situações diferentes, com os mais diversos interlocutores. E tenho a certeza que cada um de nós já o experienciou cada vez que visitou o estrangeiro. A marca Cristiano Ronaldo é hoje a mais forte que Portugal tem. Não estou a ver qualquer uma que chegue sequer perto. 

Podemos reagir lamentando o facto de sermos conhecidos como o país da bola, e não como um país de cultura, de conhecimento, de economia. Pessoalmente reajo questionando como é possível que um país tão pequeno, com 10 milhões de habitantes, consiga ser um gigante naquele que é o maior desporto do mundo. Conseguimos ser identificados pelo mais simples taxista da Jordânia, por um homem da restauração na China ou por um agricultor da África do Sul. É incrível. E se não tivéssemos Ronaldo, teriamos Mourinhos, Nanis e outros tantos, tal como já tivemos Figos e Eusébios.

Não, este não é um post à lá Miguel Gonçalves, sugerindo que devemos procurar fazer da crise uma oportunidade, blá, blá, blá. Apenas um texto recordando que por vezes conseguimos ser tão cépticos que nem nos apercebemos do valor que possuímos e que é reconhecido e invejado até externamente.

A Europa que queremos


Há duas semanas escrevi sobre a Europa que temos. Com a crise instalada, a União Europeia conseguiu demonstrar as suas mais estruturais limitações. Os cidadãos sentiram na pele, sobretudo no sul da Europa, os problemas causados pela moeda única, limitando a capacidade de resposta dos países em períodos de elevada instabilidade financeira. Ficámos também a perceber que o tão proclamado Estado Social Europeu, assumido sempre como traço identitário da Europa, é rapidamente considerado supérfluo e excedentário em períodos de crise. Por último, os cidadãos compreenderam da pior maneira que a solidariedade entre países europeus é muito frágil ou quase inexistente. A União parece preferir que os mais frágeis caiam do que entrar seriamente em sua defesa e apoio nos momentos mais críticos.

Como diversas vozes têm vindo a apontar um pouco por todo o lado, o sentimento anti-Europeu está hoje a conseguir penetrar em setores considerados pouco prováveis há uns anos atrás. Mesmo em eleitorados tipicamente mais entusiastas do projeto europeu, surgem hoje mais dúvidas do que nunca quanto à sua viabilidade. As vantagens do projeto europeu nunca pareceram tão pouco evidentes como agora.

Mas é sobretudo nestes momentos de crise e de alguma turbulência que maior clareza se exige dos diversos projetos, não sendo a Europa uma exceção a este respeito. É precisamente quando as suas fragilidades se tornaram tão claras, quando tudo parece prestes a desmoronar-se, que deve ser exigida determinação ao projeto europeu, e não necessariamente o seu abrandamento ou recuo. Alguns procurarão, e legitimamente, encontrar nas fragilidades a demonstração da impossibilidade ou inconveniência do projeto. Outros, com certeza mais europeístas, encaram as presentes fragilidades como uma demonstração do aprofundamento e consolidação que necessitam de ser feitos. Encontro-me entre estes últimos.

Destaco três dimensões que a presente crise europeia veio tornar ainda mais urgente do que nunca consolidar. Em primeiro lugar, o tipo de modelo económico que pretendemos consolidar a nível europeu. Se o Estado Providência sempre foi assumido como uma das maiores criações e traços identitários do modelo económico-social europeu, importa que a Europa não seja neutra perante esta realidade. Pelo contrário, deverá integra-la na carta de direitos fundamentais que contratualiza com os seus cidadãos. A Europa deverá encarar o modelo social europeu como um dos pilares estruturantes do seu contrato social

Em segundo lugar, porque e nitidamente ligada à dimensão acima, a Europa deverá defender uma regulação internacional dos mercados financeiros que garanta que os Estados não são tão descaradamente sequestrados como vimos nos últimos anos. Enquanto grande ator da cena internacional, enquanto um dos maiores mercados do mundo, a Europa deverá ser capaz de levar este seu tipo de posicionamento além-fronteiras, defendendo afincadamente a prometida regulação que tanto teima em não chegar.

Por último, e não menos importante, a Europa tem de rapidamente encontrar um modelo de governação que garanta que o poder está democraticamente sujeito à vontade dos seus cidadãos. Assistimos, durante este período de crise, a lideranças não escrutinadas, a demasiadas decisões que não passaram pelo cunho eleitoral. É com certeza preferível dar mais um passo rumo ao federalismo europeu, por exemplo com a eleição direta de um presidente da Comissão o do Conselho Europeu, do que nos mantermos neste modelo onde lideram os Estados mais fortes, como se tem visto neste reinado de Merkel.

Estes não são tempos de decisões fáceis. Se calhar aqui sim devemos olhar a crise como uma importante oportunidade de mudança, de melhor construirmos a Europa que queremos. 

Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

A Greve serve para quê

É extraordinário que, mesmo com os piores cortes de que há memória, mesmo com os piores ataques aos direitos dos cidadãos, se continue a questionar o porquê de se fazer greve. Embora com menor intensidade do que noutros tempos, continuamos a ouvir coisas como “adianta para quê?”, “mudará o quê?”, “serve para quê”? Trocado por miúdos, antes ouvíamos que quem fazia greve eram os malandros que queriam ficar um dia em casa e/ou gozar um fim de semana prolongado. Depois quando se começou a perceber que a greve envolve um esforço financeiro grande de quem a ela adere, o argumento para não a fazer passou a ser a sua eficácia. Ou seja, qual a relação direta entre fazer greve e as coisas efetivamente mudarem?

Para esta evolução no questionamento da eficácia da greve, não devemos minimizar o já referido acima: o esforço financeiro de quem a faz. Abdicar, num momento como o atual, de um dia de salário, representa de facto um sacrifício grande. É portanto normal que a relação esforço-retorno seja neste momento questionada. E embora a questão da solidariedade não possa ser minimizada quando ponderamos aderir a este tipo de ação coletiva, há que naturalmente respeitar quem não se sente em condições de aderir.

Mas focando na questão da eficácia do nosso ato político, importa relembrar os mais céticos ou descrentes que a reduzida relação de causalidade entre fazer greve e as coisas efetivamente mudarem não é um exclusivo desta forma de participação política. Pelo contrário. Ao assumir-se este ponto de vista, a grande maioria dos atos individuais de participação cívica têm uma relação de causalidade ínfima na mudança dos acontecimentos. Será que um abaixo-assinado ou uma petição possuem uma eficácia grande? E a participação num protesto de rua? E uma carta ao Provedor de Justiça? E o envolvimento num movimento de cidadãos?

Em última análise, tal como diversos estudos problematizam e demonstram há muito, o próprio ato individual de votar possui uma relação de causalidade na mudança muito reduzida. Qual a probabilidade do meu sentido de voto influenciar de facto um resultado a nível nacional? Uma probabilidade ínfima, com certeza.

Mas a democracia é feita destes aparentes paradoxos. Se a participação política assentasse apenas na probabilidade dos meus atos individuais efetivamente influenciarem a mudança a nível local, regional ou internacional, com certeza não teríamos qualquer participação. Para além do puro cálculo da causa-efeito, a democracia assenta em componentes de solidariedade coletiva e componentes emocionais dificilmente contornáveis. Ou seja, eu participo porque considero a participação um valor em si mesmo, uma forma de comprometimento com a comunidade e com o mundo que me envolve, um compromisso de verticalidade pessoal, entre outras dimensões.

Aderir a uma greve em muito pouco difere dos restantes mecanismos de participação. Para lá do cálculo esforço-retorno, assume-se sobretudo como uma forma de ação coletiva solidária, como um statement político de vontade de mudança. Quem a faz está tipicamente comprometido com a necessidade de participar, de dizer de sua justiça, de mostrar a sua indignação. A democracia nunca foi feita de cálculos de esforço e eficácia. A democracia é feita de democratas.

Artigo publicado no Esquerda.net