O José tem um amigo generoso, chamado Carlos, que lhe faz uns empréstimos simpáticos para o ajudar com uns problemas de liquidez. Umas centenas de milhares de euros em poucos anos. Coisa pouca, portanto. Não o faz através de transferências bancárias. Fá-lo em grande parte através de envelopes com dinheiro vivo. O José e o Carlos não se referem a este dinheiro nas suas conversas. Chamam-lhe fotocópias, livros, “aquilo”. Para ajudar a empresa do Carlos, o José utiliza uns contactos ao mais alto nível para abrir portas em Angola. Pequenas atenções, portanto. E estranhe-se quem passar que se trata de algum tipo de retribuição. Nada disso. Por acaso, a empresa do Carlos cresceu de forma formidável durante os anos em que o José foi primeiro-ministro. E não faltam testemunhos do mundo empresarial a dizer que a referida empresa se gabava da proximidade ao José. Mas tudo não passam de más-línguas e puras coincidências.
Como é evidente, a caricatura acima baseia-se apenas no que tem vindo a público através da imprensa. Falhas no segredo de justiça, notícias que surgem subitamente sabe-se lá de onde. Mas que, aos poucos, vão apertando cada vez mais o cerco a José Sócrates. O que antes parecia um caso perfeitamente nebuloso, em que ninguém conseguia ligar peça com peça, começa agora a ganhar forma.
É certo que entre o que se escreve na imprensa e a realidade vai uma enorme distância. E é até legítimo achar-se que se trata de uma tremenda operação para tramar José Sócrates. O lamaçal instalou-se de tal modo que o mais inocente dos inocentes seria rapidamente envolvido pelo mesmo, é um facto. Mas é também claro que o que antes era considerada pura ficção, deixou de o ser para a própria defesa de José Sócrates. E quem viu a entrevista da semana passada de João Araújo na RTP, percebeu que a forma de rebater as acusações diversas que vão chegando bateu no fundo. Passou a argumentar-se que receber empréstimos de centenas de milhares de euros é algo do foro privado de José Sócrates, que não é crime transferir em dinheiro vivo tais quantias e considerou-se que falar em código ao telefone é uma legítima defesa da privacidade.
Independentemente de ser crime ou não, e de continuar a ser perfeitamente defensável considerar-se que José Sócrates não devia estar preso preventivamente, qualquer um dos detalhes que deixou de ser negado pela defesa são graves para um ex-Primeiro-Ministro. Politicamente, são inadmissíveis. Um ex-Chefe de Governo que se envolve em esquemas de envelopes com dinheiro vivo e supostos empréstimos milionários de amigos, até pode não ser considerado um criminoso. Mas não restam dúvidas que tem um sério problema de transparência e de verticalidade na sua conduta. Para um ex-Primeiro-Ministro, não basta ser incorruptível, importa não deixar quaisquer dúvidas a este respeito.
Cada novo detalhe deste caso que transpira cá para fora gera grande desconforto em todo o ecossistema que naturalmente existe em torno de um governante tão emblemático como Sócrates. Os seus Ministros e Secretários de Estados, os seus assessores e amigos políticos, os seus camaradas, os seus apoiantes. É todo um edifício que está neste momento a ser fortemente abalado. E os abalos fazem-se sentir com ainda maior intensidade uma vez que o PS é dirigido por uma linha que se afirmou precisamente como orgulhosa herdeira do consulado de José Sócrates. É natural que se separe o partido do seu antigo líder. As devidas distâncias têm de existir e devem ser respeitadas. Mas estranho seria que este mesmo partido não sinta as consequências do que está a acontecer. É a integridade do seu último grande líder que está seriamente posta em causa. Não podemos todos fingir que isto não está a acontecer. Não podemos todos fingir que José Sócrates não tem nada a ver com o PS.
Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental
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