Depois de termos passado vários anos com a narrativa do “vivemos acima das nossas possibilidades”, uma versão atualizada parece já ter chegado: “não deitemos tudo a perder!”. A ideia é bastante simples: depois de termos comido o pão que o diabo amassou, com níveis de desemprego recorde, com cortes dolorosos nos mais diversos sectores, com perda de poder de compra em todas as frentes, importa continuar a ser um bom aluno para não sermos castigados pelos mercados. Agora que até já nos estamos a financiar com juros razoáveis, mantenhamos a devida distância dos gregos para que os mercados não mudem de ideia a nosso respeito.
As narrativas são sempre redutoras, é um facto. Mas constituem uma óptima muleta na veiculação de qualquer mensagem política. Neste sentido, o discurso dominante sustenta-se sempre uma boa narrativa. No caso do “vivemos acima das nossas possibilidades”, a mesma foi desmontada vezes sem conta pela oposição, por especialistas, por fontes insuspeitas a nível internacional, mas ela ainda hoje subsiste em cada conversa de café, em qualquer argumentação de circunstância. Conseguiu-se que a maioria dos cidadãos interiorizasse que os nossos problemas se deviam aos gastos supérfluos das famílias, ao mesmo tempo que o Estado acumulava gorduras e ineficiências. A crise surgiu como um castigo inevitável e a austeridade como a penitência incontornável.
No momento actual, uma vez que os parceiros europeus até elogiam os nossos sacrifícios, os indicadores até dizem que o desemprego já teve pior e as taxas de juro nos mercados das dívidas até estão a descer, PSD e CDS fazem-nos crer que o pior já passou. Que já cumprimos a parte mais penosa da penitência e que chegou o momento de começarmos a pensar em desapertar um bocadinho o cinto. Devagarinho e com ponderação. Sempre cientes que devemos fazê-lo com muito cuidado para não irritarmos novamente os mercados. Porque se o fizermos, deitaremos tudo a perder. Tudo terá sido em vão.
Tratando-se de uma narrativa poderosa, que aproveita de forma inteligente a natural vontade que os Portugueses têm em virar a página e olhar para a frente, ela é profundamente inconsistente. Continua a assumir que não existia qualquer outra alternativa possível. Que só com os sacrifícios feitos conseguiríamos avançar com as necessárias reformas que garantirão um crescimento sustentado da nossa economia. Assume que o país apresenta hoje menores debilidades do que tínhamos anteriormente e que os juros baixos nos mercados da dívida reflectem esse reconhecimento.
Ora, é preciso ser-se muito optimista para considerar que foi feita qualquer reforma profunda em Portugal que garanta agora um crescimento sustentável. As poupanças foram feitas sobretudo através de cortes cegos na despesa e com aumentos na receita através de impostos adicionais. E, não menos importante, Portugal beneficia hoje de taxas de juro menores à semelhança do que está acontecer com toda a Europa. É um fenómeno sobretudo exógeno à economia e está muito pouco relacionado com o desempenho nacional. Neste sentido, se a mesma confluência de factores que nos levou à crise ocorresse, não temos razões para achar que o país estaria melhor preparado. Até porque a sua dívida pública é hoje bastante maior.
De qualquer modo, fica feito o aviso à navegação: a narrativa do “não deitemos tudo a perder” está ai para ficar. Estará presente em todo o debate para as eleições legislativas de Outubro e povoará qualquer conversa de café que tenhamos. Importa, por isso, que a oposição consiga combatê-la afincadamente. Por oposição ao “não deitemos tudo a perder”, importa mobilizar o “valeu a pena?”, ou o “estamos melhor preparados?”. Melhor ainda, importa mobilizar o “é este o país que queremos?”.
Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental
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