Acusações de golpe de Estado, de vitória obtida na secretaria, de subversão dos resultados eleitorais, de quebra de uma importante tradição democrática… As expressões utilizadas pela direita política têm sido mais do que muitas para atingir o entendimento que lhe impedirá de governar nos próximos anos. À esquerda responde-se procurando demonstrar serenidade e naturalidade, recordando que uma aliança à esquerda é tão legítima ou expectável como qualquer outra, não se percebendo por isso o espanto causado.
A política tem destas coisas: os seus intervenientes têm sempre uma dificuldade tremenda em ser 100% intelectualmente honestos. Colocar as cartas todas em cima da mesa, abdicando de jogos e tornando-se verdadeiramente transparentes com o eleitorado. E tal tem-se tornado particularmente evidente nestas últimas duas semanas em Portugal.
Os responsáveis do PSD/CDS podem repetir até à exaustão que “quem vence as eleições é que governa” e outras fórmulas do género. A referida linha de argumentação é talvez suficiente para uma conversa de café, mas desmorona-se rapidamente em qualquer discussão minimamente séria. Sendo o nosso sistema semi-presidencial (ou semi-parlamentar, como alguns defendem), o Governo emana do Parlamento. Se existir uma maioria constituída por várias forças políticas disposta a suportar/constituir uma solução governativa, é difícil perceber as dúvidas que têm sido levantadas.
Argumenta-se que existe a tradição de convidar a força política mais votada a constituir governo. Mas a suposta tradição apenas existe porque, até hoje, nunca se formou logo após as eleições uma alternativa à força política mais votada que, possuindo mais lugares no parlamento, se mostrasse disponível para formar governo. Se o PS, BE e PCP detêm a maioria dos mandatos, receberam a maioria dos votos, demonstram ter um entendimento e afirmam estar prontos para formar/suportar um Governo, qual é a dúvida? É chato para coligação PSD/CDS ter sido a força política mais votada e ficar de fora de uma solução de governo. Mas eis o sistema semi-presidencial (ou semi-parlamentar) a funcionar.
Mas se importa que a direita política seja um pouco mais séria na crítica ao que se está a passar, não ficaria mal à esquerda assumir que os entendimentos que agora se procuram não estão tão envoltos em normalidade quanto se parece fazer crer. A esquerda em Portugal nunca se conseguiu entender com vista à formulação de uma solução governativa. E importa sublinhar que as negociações em curso entre as forças políticas à esquerda são uma verdadeira surpresa. Antes das eleições, nenhum dos partidos em causa demonstrou claramente preconizar este cenário. Pelo contrário, manteve-se na melhor das hipóteses um discurso dúbio a este respeito, como aliás aconteceu em diversas eleições anteriores. É portanto natural que exista surpresa nos mais diversos quadrantes sobre o momento que vivemos. Surpresa esta que atinge aliás as próprias máquinas partidárias do PS, BE e PCP. De forma mais ou menos disciplinada, torna-se difícil disfarçar alguma ansiedade com este novo cenário de entendimento.
A formação de um governo suportado numa maioria de esquerda será uma novidade, comportará riscos e irá sempre gerar algumas incertezas. Representará um desafio gigante para os responsáveis políticos dos três partidos, obrigados a enormes compromissos e a uma disciplina férrea para manter a coesão necessária. De qualquer modo, este novo cenário representará nada mais nada menos do que a democracia a funcionar. 40 anos depois, uma das principais anomalias da democracia portuguesa – a ausência de entendimentos à esquerda – está a ser ultrapassada.
Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental
Imagem: Sapo24
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