Fico sempre enternecido quando vejo um Executivo agarrar num problema antigo, comprometer-se a acabar com as injustiças que o mesmo incorpora e apresentar-se assim como grande cavaleiro da justiça da nossa vila e arredores. Neste caso concreto, depois de avanços e recuos, depois de algumas hesitações, o Governo parece agora disposto a reformar os suplementos salariais na Administração Pública. Pretende torna-los mais coerentes, acabando com os desequilíbrios e discricionariedades que muitos encerram.
E se formos intelectualmente honestos a este respeito, a necessidade de uma reforma profunda nestes domínios há muito se faz sentir. Devido a políticas pouco estruturadas, pouco equilibradas, feitas à medida e de acordo com a conveniência dos tempos, o mundo da Administração Pública possui hoje uma imensidão de complementos remuneratórios. Complementos de turno, de representação, de risco, entre muitos outros que se foram propagando ao longo dos tempos. Sendo justificáveis em inúmeras situações, a proliferação à medida deste tipo de suplementos fez com que se criassem desequilíbrios pouco sustentáveis no setor público. E, sobretudo, originou ausência de transparência em diversos vencimentos.
Para dar um exemplo, um funcionário público que exerça funções na Assembleia da República tem acesso a um suplemento remuneratório que pode atingir 70% do seu vencimento base, apenas pelo facto de ser funcionário parlamentar. Porquê? Porque… Porque em 1978, numa altura que em que o trabalho parlamentar se prolongava muito para além da normal carga de trabalho, entendeu-se que era preferível um suplemento remuneratório substancial ao pagamento de horas extraordinárias. E assim criou-se uma desigualdade hoje pouco justificável.
Como o exemplo extremo cima demonstra, se é certo que existem diversas funções, diversas responsabilidades e até complexidades diferentes no exercício do trabalho público, a melhor forma de as refletir de forma transparente no vencimento dos trabalhadores é através do remuneração base, e não numa imensidão de suplementos pouco transparentes que criam desequilíbrios desnecessários. É no vencimento base que deve ser refletido o valor remuneratório de um trabalhador. Quando se verifica que os suplementos remuneratórios estão simplesmente a querer tornar a remuneração do trabalhador mais competitiva, algo vai mal.
Trabalhar na maior coerência deste universo é naturalmente uma boa notícia. É algo aliás que há muito se justifica. Qual é então o problema da iniciativa em curso? É que, por mais que o Governo repita que a reforma dos suplementos na Administração Pública não tem o propósito de proceder a reduções remuneratórias, ninguém o consegue levar minimamente a sério. Num contexto como o atual, em que toda e qualquer reforma no setor público teve sempre como grande propósito a contenção de custos, ninguém pode sequer considerar que o presente caso será diferente. E, sendo assim, a mesma desvirtua-se à partida porque quem a está a promover, fá-lo centrado em propósitos bastante distantes daqueles que publicamente defende, desvirtuando o processo à partida. A iniciativa transforma-se assim num espécie de justiça de esquina ou de vão de escada que merece evidentemente ser travada. O regime de suplementos pode e deve ser reformado, mas fazê-lo agora seria comprometer qualquer esperança de seriedade no processo.
Artigo publicado Sexta-feira no Esquerda.net
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