A proximidade de eleições consegue sempre colorir de forma súbita o discurso político. De um momento para o outro, como agora se vê da esquerda à direita, todos concordam que o país precisa de investimento para colocar a sua economia a funcionar. Mesmo os seus mais acérrimos defensores começam a concordar que já chega de austeridade. É bonito. E a discussão sobre o salário mínimo nacional é sintomática a este respeito. A direita política que tanto temeu o aumento dos custos de produção, que tanto insistiu para que o cinto se mantivesse apertado, apresenta-se agora generosa, pronta a dar mais 15 euros por mês às centenas de milhares que auferem o mais baixo dos rendimentos.
E tudo isto sucede num ambiente em que, de repente, parece que o país está a dar a volta. Que se calem os mais céticos do esforço empreendido pelos Portugueses nos últimos anos. Porque o país está de facto a recuperar, com o défice abaixo do estimado e as taxas de juro no mercado a demonstrarem que afinal até somos “consumíveis”. E, cereja em cima do bolo, a Fitch passou a tendência do rating Português para positiva. Ou seja, continuamos a ser “lixo”, mas com agora com perspetivas positivas. O que faz toda a diferença.
Quando questionados sobre se valeu a pena, os defensores do caminho seguido apresentam os resultados acima como a demonstração de que tinham razão. Era mesmo necessário bater no fundo para podermos renascer das cinzas. Um novo Portugal surgiria então, mais sólido e forte, pronto a melhor encarar o futuro. Embora seja evidente a vontade que todos temos de ver a luz ao fundo do túnel e considerarmos que o pior já passou, tal não responde efetivamente à pergunta sobre se “valeu a pena”. Ora vejamos: até podemos estar a renascer das cinzas, mas tal não justifica que tenha valido a pena a nossa redução a um monte de cinzas, correto?
E um olhar minimamente mais objetivo do que se passou leva-nos de facto a concluir que houve um milagre. Não haja dúvida a este respeito. Mas foi um milagre ao contrário. O país não conseguiu efetivamente dar a volta por cima quando já poucos acreditavam. Não foi bem esse o milagre que sucedeu. Conseguiu-se sim, apesar de todos os sacrifícios, de toda a austeridade, de todos os cintos apertados que conhecemos, não resolver qualquer problema estrutural que era suposto resolver-se. Esse sim é o verdadeiro milagre. Este sim é um feito verdadeiramente extraordinário.
Apesar dos impressionantes cortes nos direitos, apesar do empobrecimento evidente, apesar do desemprego histórico e da emigração catastrófica, apesar de to país ter comigo o pão que o diabo amassou, nada foi efetivamente resolvido ou estruturalmente alterado. O cumprimento do défice foi atingido sobretudo através de expedientes extraordinários e não através das famosas gorduras que tanto era citadas. Não houve qualquer reconversão de fundo do nosso setor económico, a nossa economia não está mais forte, a nossa Administração Pública não está mais saudável. Portanto, conseguiu-se o impressionante milagre de fazer sacrifícios duríssimos para que muito pouco ou nada acontecesse.
Em última instância, nada nos leva a crer que estamos mais saúdáveis do que quando a crise estalou. Não estamos objetivamente menos vulneráveis. Pelo contrário, se hoje voltassemos a ser alvo de um ataque especulativo como então aconteceu, sem que a Europa reagisse com instrumentos como o BCE para acalmar os ânimos, voltaríamos com certeza à estaca zero da crise. Eis o milagre ao contrário em todo o seu explendor. Depois de tanto sacrifício, depois de tanto esforço e de tanta destruição, não estaríamos com certeza melhor preparados para resistir ao embate. No entanto, como estamos a levantar-nos de uma tremenda queda, alegramo-nos com a ilusão de estarmos a progredir. Ora, só nos estamos a levantar porque efetivamente caímos. Simples, não?
Artigo ontem publicado no Açoriano Oriental
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