terça-feira, 6 de setembro de 2011

O Enterro dos Bons Velhos Tempos

Atravessamos, como é sabido, uma crise cujo paralelo não encontramos nas últimas décadas. As suas consequências há muito deixaram os domínios semi-transcendentes para o cidadão comum como o sobe e desce das bolsas, as taxas de juro da dívida soberana a baterem novos recordes ou os cortes nos ratings. Pelo contrário, as consequências são hoje tangíveis pelo mais comum dos mortais. Desde cortes nos salários ao desemprego a aumentar a olhos vistos nas diversas camadas da população, desde a subida das taxas de juro ao aumento vísivel da carga fiscal.

E para lá das condições objectivas, é também no domínio das expectativas e no clima de (des)confiança generalizada quanto ao futuro que este mau momento economico-social se faz sentir com particular intensidade. Sobretudo porque assistimos a uma mudança de paradigma no que à evolução das condições de vida diz respeito: o ontem foi provavelmente melhor do que o amanhã. Ou seja, tal como tem vindo a ser sublinhado por muitos, há a forte possibilidade de as gerações vindouras viverem pior do que as suas antecessoras.

Nos últimos 30 anos, ou mesmo 50 anos, vivemos períodos de crescimento económico nacional quase ininterruptos. Era legitímo e mais do que evidente que os filhos viveriam melhor do que os pais. Ou seja, a melhoria progressiva das condições de vida era uma premissa perfeitamente interiorizada no subconsciente de cada um. Mais e mais pessoas integrariam a classe média, tendo acesso a bens e comodidades outrora acessíveis a apenas alguns. Desde ter casa própria, à capacidade de ir melhorando a gama do seu automóvel, passando por férias no estrangeiro ou à possibilidade de ter o último grito em electrodomésticos. Nos referidos "bons velhos tempos", era assumida a quase impossibilidade das pessoas regredirem profissionalmente em termos salariais. Pelo contrário, com o passar dos anos, o vencimento de qualquer funcionário tenderia a aumentar, premiando o seu empenho e antiguidade. Por outro lado, apesar de alguns recuos, era também assumida a progressiva capacidade do Estado em dar resposta às necessidades sociais da população.

Recordando o que há apenas dois ou três anos atrás eram quase verdades de senso comum, apercebemos-nos bem da gravidade da situação em que nos encontramos actualmente. Uma situação em que o desejo de progredir foi substituído pelo desejo de não regredir muito. Exagerando propositadamete um pouco, deixou-se de querer progredir profissionalmente, considerando já um sucesso manter o posto de trabalho. Deixou-se de querer ter uma melhor rede pública de escolas, para se passar a querer ter a rede possível. Deixou-se de querer ter um sistema de segurança social que faça justiça ao seu nome, para se passar a contentar com um sistema que acuda apenas nos casos de vida ou de morte. Escusado será sublinhar as consequências negativas desta mudança de paradigma.

No entanto, curiosamente, parece ainda vigorar a convicção de que vivemos tempos recessivos passageiros. Que tudo voltará com maior ou menor demora à normalidade do antigamente que agora tão douradamente recordamos. O problema é que tal desejo parece ignorar que grande parte das reformas em curso não têm tal intuito. São aliás implementadas no sentido inverso, inspiradas por ideias políticas muito críticas e dispostas a varrer de vez com o modelo de Estado Providência a que nos habituámos nestes últimos anos. Eis o pequeno pormenor que parece estar a escapar à generalidade da opinião pública. As reformas em curso procuram um caminho sem retorno.
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Artigo publicado a 23 de Agosto no Açoriano Oriental

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