Sacrificar-nos hoje para que os amanhãs que aí vêm sejam melhores é a cenoura que há muito é apresentada aos portugueses. A austeridade é a penitência que curará o país dos seus grandes males. E é este objetivo que se pretende que mobilize toda a sociedade nos dias que correm: sacrifícios hoje para amanhã podermos voltar a desfrutar. Uma boa narrativa, portanto.
O problema é que as narrativas são naturalmente ficcionadas e, neste caso em concreto, a terminologia “ficção” é particularmente bem empregue. Pensar que problemas estruturais podem ser resolvidos a juzante, com cortes nos rendimentos, nas prestações sociais, endurecendo a legislação laboral e fazendo recuar as funções sociais do Estado, é uma forma particularmente “pouco focada” de atuar. Sobretudo quando a solução aplicada não só não está a resolver o problema, como está sobretudo a aprofundá-lo. E mantendo-se a desregulação do sistema financeiro internacional, nada garante que os seus instáveis e desastrosos efeitos não voltam atacar. Ou seja, a luz ao fundo do túnel que há tanto tempo vem sendo proclamada na verdade não existe. Utilizando outros termos, a cenoura não existe.
Curiosamente, para contrabalançar esta evidência, é cada vez mais claro que o pau não só existe, mas também que a sua utilização exige agora cada vez menos parcimónias. As cargas policiais no Chiado vieram reforçar o que já se vinha notando em manifestações anteriores. O uso da força pelas autoridades policiais pode e vai ser usado para manter as coisas na linha.
O posicionamento do presente governo é simples: quem não é mobilizável pelo conto da luz ao fundo do túnel, está profundamente equivocado. Ou seja, quem não é mobilizável pela cenoura, o pau está sempre lá para dissipar ceticismos.
Artigo publicado hoje no Esquerda.net
(Imagem: Coturno Nocturno)