quarta-feira, 19 de março de 2014

Um Abraço, Professor


Há pessoas que pertencem ao grupo dos gigantes. Não são naturalmente muitos, mas alguns poucos conseguem assumir esse estatuto no nosso quadro de referência. E o que faz deles gigantes é precisamente o facto do seu brilhantismo ser acompanhado de uma magnifica acessibilidade. O Medeiros Ferreira é para mim desses gigantes. Digo-o sinceramente e sem qualquer tipo de exagero. E é também por isso que a notícia da sua partida deixa-me com um natural vazio.

O Medeiros Ferreira foi meu professor na FCSH-UNL. Era aquele conterrâneo brilhante lá da Faculdade, com quem no fim das aulas, de vez em quando, trocava uma ou outra cumplicidade sobre a política nacional e sobre a política açoriana. Mais tarde, foi meu co-orientador na tese de mestrado. Aí sim tive oportunidade de conviver com ele mais de perto, discutindo temas "nada interessantes" como o final do Estado Novo, o 25 de Abril, a forma como se estruturou o sistema partidário português e o seu reflexo nos Açores. Sem grande esforço, mas longe de qualquer petulância ou paternalismo, a assertividade dos seus comentários e sugestões representavam aquele toque que todo o mestrando precisa para melhor orientar a sua investigação.

Mais tarde, quando me candidatei a doutoramento, Medeiros Ferreira veio claro novamente a bordo.  Era incansável a este respeito. E tremendamente acessível. Guardo preciosamente na memória as vezes que o encontrei no Princípe Real para discutir temas de tese, problemáticas a desenvolver, etc. 

Mais tarde ainda, nas andanças blogosféricas, trocamos um vez ou outra ideias sobre temas diversos. Acompanhá-lo no Bicho Carpinteiro e, mais tarde, no Córtex Frontal era obrigatório. Sobretudo aprendendo como é possível fazer grandes posts com apenas uma ou duas frases. Era um mestre blogosférico neste sentido. Simplesmente brilhante.

No entanto, para além de todas as experiências vividas com o próprio, nestes momentos de partida salta-nos sempre à vista as qualidades que tornavam alguém grande: Inteligência e lucidez, independência e irreverência, com um sentido de humor apurado e com uma atitude que não escondia o seu gosto pela vida. Um líder, um grande intelectual e académico que fazia política inteligente e que importava ouvir para obter uma visão moderada, mas assumidamente de esquerda sobre o país e o mundo. 

Felizmente, gigantes como Medeiros Ferreira não chegam de facto a partir. Ficam cá, como referência, com obra feita, fazendo escola até... É isso que, nestes momentos, nos serve para colmatar o tal sentimento de vazio.

Um grande abraço, Professor.

terça-feira, 18 de março de 2014

Os Grandes Reestruturadores


O Manifesto dos 70 conseguiu marcar definitivamente os últimos dias. Originou o que se pretende com este tipo de iniciativas: agitar as águas, gerar discussão e, sobretudo, obrigar os vários atores a posicionarem-se sobre um tema fraturante. E, de forma quase maniqueísta, foi sobretudo a esta última dimensão que assistimos na sequência da divulgação pública do documento. A reestruturação da dívida ficou no centro da discussão política, obrigando a uma dissecação dos argumentários a favor e contra este tipo de ação.

Do lado dos que concordam com a reestruturação, os argumentos são claros: as condições impostas são pura e simplesmente impossíveis de concretizar. Portugal teria de ter nos próximos 20 anos um desempenho económico que nenhum país europeu conseguiu ter durante mais do que 2 ou 3 anos. Teriamos de manter níveis de austeridade extremos, lado a lado com taxas de consumo e de crescimento verdadeiramente notáveis, o que se torna quase impossível em termos matemáticos. A reestruturação surge assim como uma atitude de realismo e até de responsabilidade, procurando encontrar condições que permitam, por um lado, tirar o país do caos em que se encontra, ao mesmo tempo que são garantidas as condições para podermos pagar até ao último cêntimo o que lhe foi emprestado.

Do lado dos que se opôem ao manifesto, mais do que debruçarem-se sobre a possibilidade ou impossibilidade de cumprir as condições em vigor, centram-se tipicamente em duas grandes questões. Por um lado, os mais moderados que argumentam com o facto deste não ser o momento mais oportuno para se falar em reestruturação. Tal poderia assustar os nossos credores e os famigerados mercados. Por outro lado, os mais conservadores que sublinham que não se deve falar de reestrturação nem agora nem nunca, uma vez que tal representa uma violação das condições acordadas com os nossos credores.

Curiosamente, as referidas posições mais moderadas ou conservadoras parecem esquecer o que a verdadeira reestruturação das dívidas está já em curso. Não o está relativamente aos credores internacionais, é verdade, mas sim relativamente aos cidadãos portugueses que foram vendo o seu bolso ser constantemente remexido. Numa primeira fase, tentou-se amenizar tais abusos de confiança com o facto de serem supostamente provisórios. Os impostos aumentariam, mas apenas provisóriamente. Os salários e as pensões diminuiriam, mas apenas provisóramente. A austeridade seria uma catástrofe social, mas apenas provisóriamente. Subitamente, num estalar de dedos, o Governo começou a assumir o que há muito se suspeitava, mas que até então era negado a pés juntos. Passos Coelho chega mesmo a irritar-se agora com todos aqueles que presumiram que se tratava de algo provisório.

Esta sim tem sido a verdadeira reestruturação em curso: os cortes nos salários e pensões que se tornaram permanentes, os aumentos de impostos que vieram para ficar, a austeridade que é assumida como novo modelo de desenvolvimento. Os grandes reestruturadores, do Governo e da maioria que o apoia, pelos vistos não estão preocupados com esta violação das condições junto de quem os elegeu, junto de quem tinha direitos adquiridos, junto de quem trabalha e viu subitamente ser-lhe retirada parte do seu rendimento. Os grandes reestruturadores importam-se apenas com os grandes credores, com os contratos com eles firmados e com a reputação de seriedade para lá de Vilar Formoso. 

Se calhar este grandes reestruturadores deviam fazer o seu próprio manifesto, sublinhando (a bem do país, claro) a importância de não serem mantidos os compromissos assumidos com os cidadãos. Isso é que era. Porque não? Fica feito o desafio.

Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental

domingo, 16 de março de 2014

Viva o Sócrates!


O mesmo Sócrates que há três anos chamou a troika e assinou o memorando de entendimento, o mesmo Sócrates que há três anos qualificava qualquer ideia de reestruturação da dívida como um tremendo calote que traria o desemprego e a miséria ao país, foi o Sócrates que hoje fartou-se de elogiar o Manifesto dos 74, dizendo mesmo que o assinaria... Clap clap clap, viva o Sócrates!

Ora aí está o que eu não queria que acontecesse...

Preferia que o Sporting perdesse o jogo com justiça do que o ganhasse com um fora de jogo... A veredito futebolístico da semana será o facto de "uma mão lava a outra" i.e. "o Sporting não tem nada que se queixar"... Se tal sossega todas mentes não-sportinguistas, sobretudo as benfiquistas, seja feito à vossa vontade. :)

sexta-feira, 14 de março de 2014

O Manifesto do Calote... Que Horror

O manifesto pela reestruturação da dívida pública foi, sem dúvida, o acontecimento político da semana. E, como é evidente, o estranho não foi assistirmos a signatários tão diversos em torno de um tema. Convergências e consensos há muitos... O que tornou o manifesto central foi o apelo tão vasto em torno de um tema que há não muito tempo atrás era um autêntico tabu. Num momento em que o Governo nos garante que estamos no bom caminho, eis que surge um manifesto subscrito por personalidades de diversos quadrantes declarando que temos de reestruturar a dívida.

Para quem não se lembra muito bem, a reestruturação da dívida foi uma das principais bandeiras do Bloco em... 2011! Efoi-o precisamente por já na altura ser evidente que não era possível saldar a dívida que o país acumulava. Saldar a dívida com os juros e nos prazos então acordados seria a condenação de quaisquer hipóteses de retoma económica . Embora fosse a única solução realista para evitar um mergulho convicto na catástrofe social, a reestruturação foi desde logo encarada como a solução de uma cambada e radicais marginais que por aí andavam.

A condenação da reestruturação atingiu aliás o seu ponto máximo quando começou a ser apelidada de “calote” aos credores. Um calote que levaria à miséria, a desempregos e a falências. Um caos, portanto. E quem foi um dos grandes autores desta maravilhosa profecia em torno do calote? O nosso literalmente inesquecível José Sócrates. Um dos debates televisivos que precederam as legislativas de 2011 e colocou frente a frente Sócrates e Louçã constitui hoje uma bela peça para reavivar a memória de muitos.

Vemos agora os mais diversos sectores reunirem-se em torno deste tema, considerando-o como a única saída realista perante o cenário que o país vive. Não compensa de facto ter razão antes do tempo... De qualquer modo, independente da maior ou menor seriedade mostrada por alguns em torno deste tema, ainda bem que começam a surgir este tipo de convergências, este tipo de consensos. Não haja dúvidas a este respeito. Em última análise, é sinal de que a mudança está em curso acelerado. O radicalismo de ontem transformou-se agora em pragmatismo. Venham mais convergências deste tipo. Cá estaremos para as receber.

Artigo hoje publicado no Esquerda.net

terça-feira, 4 de março de 2014

Palhaçada

Obrigado, Pedro, por me teres brindado com mais este dia de trabalho. Foi um Carnaval maravilhoso. Foi mais um dia em que me senti um verdadeiro privilegiado, purificado pelo trabalho em nome da produtividade do país. Obrigado, Pedro!

Guiné Equatorial, ninguém leva a mal?

Possivelmente por estarmos no Carnaval, parece que ainda não se refletiu devidamente sobre o que significará a entrada da Guiné Equatorial na CPLP. Não é uma questão nova. Há muito que vinha sendo discutida, embora sempre rodeada de visões que variavam entre o gozo e a caráter incrédulo. Seria possível imaginar há alguns anos atrás que um Estado conhecido como uma das mais antigas ditaduras africanas, sem qualquer tradição de lingua portuguesa, pudesse agora ocupar o papel de país membro da CPLP? Duvido. Mas o que terá acontecido para que essa hipótese nem sequer ponderada esteja agora a concretizar-se?

Antes de mais, não são precisas grandes análises para explicar as conhecidas fragilidades de uma organização como a CPLP. Surge como um esforço meritório, sobretudo Português, de ativar um espaço de cooperação permanente entre um conjunto de países que, pelas raízes históricas comuns conhecidas, possuem uma grande proximidade cultural. E a CPLP tem dado passos importantes na aproximação dos seus membros nas mais diversas vertentes. Seja na saúde, na justiça, na educação e cultura, multiplicam-se as iniciativas de cooperação nestes domínios. No entanto, a ausência de instrumentos financeiros sólidos que permitam melhor materializar a referida cooperação, lado a lado com uma manifesta falta de suporte político, determinam que a CPLP fique muito aquém do seu potencial.

Sublinhadas as fragildades acima, mesmo assim torna-se impercetível a entrada da Guiné Equatorial na organização. Em primeiro lugar, pelo seu lamentável registo ditatorial. É uma das mais antigas ditaduras africanas, onde o Estado de Direito é uma miragem, sendo os julgamentos sumários e as prisões arbitrárias práticas corrente, segundo diversas organizações de defesa dos direitos humanos. É portanto um regime bem distante dos mínimos democráticos exigíveis, mesmo tendo em conta os complexos contextos africanos. Em segundo lugar, não consta que exista qualquer proximidade minimamente relevante da Guiné Equatorial relativamete à língua Portuguesa. Fala-se com certeza mais Português no Luxemburgo, França ou em alguns estados Americanos, do que se fala na Guiné Equatorial.

O que explica então este súbito abrir de braços da CPLP? Apesar de ter um território pequeno (semelhante ao Alentejo) e com poucos habitantes (650 mil), a Guiné Equatorial é o terceiro exportador de petróleo de África. Para além disso, possui também um subsolo rico em gás natural e  outras riquezas. Ou seja, a aceitação da Guiné Equatorial na CPLP é sobretudo encarada como estratégica do ponto de vista económico-financeiro por parte dos restantes países membros.

A diplomacia e o relacionamento entre Estados é recheado deste tipo de hipocrisias institucionais, não valendo a pena ter ilusões a este respeito. Aliás, a entrevista que Rui Machete dá este Domingo ao Público até nos deixa tontos com tanta hipocrisia, tão grande é a desonestidade inteletual  e a falta de coluna vertebral demonstrada pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros.

De qualquer modo, apesar de ser naíve achar-se que este tipo de interesses estratégicos dos Estados poderiam passar ao lado deste tipo de decisão, importa também não nos deixarmos contentar com este tipo de obscurantismo. A integração de um país como a Guiné Equatorial na CPLP representa, em primeiro lugar, uma lamentável ignorância sobre o regime político que vigora no país. Por outro lado, e não menos importante, esta adesão pode  também determinar que a CPLP saia ainda mais describilizada no panorama internacional, não sendo também de descurar o efeito corrosivo interno da referida opção.

Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental

segunda-feira, 3 de março de 2014

Mudam-se os tempos

Quando andava na faculdade, o quiosque de rua era uma instituição. Entre tabaco e jornais, deixava lá uma parte simpática da mesada. A passagem pelo quiosque era um saboroso ritual que se repetia diariamente em busca de alimento para a alma.

Com o abandono do tabaco e a adesão há já uma série de anos às assinaturas digitais de jornais, as idas ao quiosque praticamente desapareceram. Surgiu um vazio grande na minha vida, confesso... :)

Mas eis que, com o crescimento das crias, o quiosque volta a aparecer no mapa dos rituais. Porquê? A culpa é dos cromos! Da caderneta do campeonato de futebol aos nutriventures, as visitas aos quiosques voltaram a ser frequentes. E o impacto no orçamento familiar também voltou. É enternecedor, eu sei. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.

Alerta Laranja

Do congresso do passado fim-de-semana destacou-se sobretudo a realidade paralela em que vive o partido laranja. O PSD vê um país que ninguém vê, aponta milagres que ninguém vislumbra e lança foguetes sem que ninguém perceba porquê. Um bando de loucos, portanto, que se reuniu no Coliseu. Mas mais do que a insanidade eufórica que por aquelas bandas andou, é sim preocupante a leveza com que puderam assumir publicamente a sua loucura. É sim preocupante o grande à vontade sorridente com que se apresentaram ao país e gritaram vitória. Sem grandes rodeios, sem falsas humildades, e com maior ou menor loucura, todos vimos um PSD triunfante, seguro de si e dos seus feitos no país.

Todo este cenário é alarmante. Quando um Governo assumidamente austeritário se apresenta tão otimista e tão cheio de vitalidade três anos depois de ter iniciado a sua sova ao país, algo vai mal. Com Portugal feito em cacos, com todos os indicadores a demonstrarem que bateu no fundo, sem qualquer reforma estrutural conseguida, assistimos mesmo assim a uma maioria com ar vitorioso e pronta para a batalha que se segue.

E o otimisto é tanto que até se dão ao luxo de cometer erros de casting grosseiros. O regresso de Relvas é um bom exemplo a este respeito. Mesmo sabendo todos os danos que tal opção lhe traria, Passos não teve grandes problemas em assumir perante o país a falta que sentia do seu velho amigo. E se o fez, é porque está certo que tem margem para tal e que o risco compensa.

O congresso do PSD deve fazer soar na oposição um forte alerta laranja. É que apesar das sondagens apontarem para uma derrota da maioria nas Europeias, os números já foram mais tranquilizadores a este respeito. Como é possível que, nas eleições tipicamente mais propensas a votações de protesto, a esquerda consiga a proeza de deixar fugir um excelente resultado?

Podem naturalmente ser encontradas explicações mais estruturais a este respeito. Destaque para a velha e paradoxal tendência dos eleitores votarem tipicamente mais à direita em momentos de crise económica. De qualquer modo, para lá das explicações estruturais ou exógenas, a esquerda, toda a esquerda, pode e deve refletir sobre como é possível não estar a agarrar consistentemente a vaga de descontentamento que varreu o país nos últimos anos. Como é possível que, em última análise, a presente maioria continue tão sorridente?

Artigo publicado na 6f no Esquerda.net