terça-feira, 27 de outubro de 2015

Cartas em cima da mesa


Acusações de golpe de Estado, de vitória obtida na secretaria, de subversão dos resultados eleitorais, de quebra de uma importante tradição democrática… As expressões utilizadas pela direita política têm sido mais do que muitas para atingir o entendimento que lhe impedirá de governar nos próximos anos. À esquerda responde-se procurando demonstrar serenidade e naturalidade, recordando que uma aliança à esquerda é tão legítima ou expectável como qualquer outra, não se percebendo por isso o espanto causado.

A política tem destas coisas: os seus intervenientes têm sempre uma dificuldade tremenda em ser 100% intelectualmente honestos. Colocar as cartas todas em cima da mesa, abdicando de jogos e tornando-se verdadeiramente transparentes com o eleitorado. E tal tem-se tornado particularmente evidente nestas últimas duas semanas em Portugal.

Os responsáveis do PSD/CDS podem repetir até à exaustão que “quem vence as eleições é que governa” e outras fórmulas do género. A referida linha de argumentação é talvez suficiente para uma conversa de café, mas desmorona-se rapidamente em qualquer discussão minimamente séria. Sendo o nosso sistema semi-presidencial (ou semi-parlamentar, como alguns defendem), o Governo emana do Parlamento. Se existir uma maioria constituída por várias forças políticas disposta a suportar/constituir uma solução governativa, é difícil perceber as dúvidas que têm sido levantadas. 

Argumenta-se que existe a tradição de convidar a força política mais votada a constituir governo. Mas a suposta tradição apenas existe porque, até hoje, nunca se formou logo após as eleições uma alternativa à força política mais votada que, possuindo mais lugares no parlamento, se mostrasse disponível para formar governo. Se o PS, BE e PCP detêm a maioria dos mandatos, receberam a maioria dos votos, demonstram ter um entendimento e afirmam estar prontos para formar/suportar um Governo, qual é a dúvida? É chato para coligação PSD/CDS ter sido a força política mais votada e ficar de fora de uma solução de governo. Mas eis o sistema semi-presidencial (ou semi-parlamentar) a funcionar. 

Mas se importa que a direita política seja um pouco mais séria na crítica ao que se está a passar, não ficaria mal à esquerda assumir que os entendimentos que agora se procuram não estão tão envoltos em normalidade quanto se parece fazer crer. A esquerda em Portugal nunca se conseguiu entender com vista à formulação de uma solução governativa. E importa sublinhar que as negociações em curso entre as forças políticas à esquerda são uma verdadeira surpresa. Antes das eleições, nenhum dos partidos em causa demonstrou claramente preconizar este cenário. Pelo contrário, manteve-se na melhor das hipóteses um discurso dúbio a este respeito, como aliás aconteceu em diversas eleições anteriores. É portanto natural que exista surpresa nos mais diversos quadrantes sobre o momento que vivemos. Surpresa esta que atinge aliás as próprias máquinas partidárias do PS, BE e PCP. De forma mais ou menos disciplinada, torna-se difícil disfarçar alguma ansiedade com este novo cenário de entendimento.

A formação de um governo suportado numa maioria de esquerda será uma novidade, comportará riscos e irá sempre gerar algumas incertezas. Representará um desafio gigante para os responsáveis políticos dos três partidos, obrigados a enormes compromissos e a uma disciplina férrea para manter a coesão necessária. De qualquer modo, este novo cenário representará nada mais nada menos do que a democracia a funcionar. 40 anos depois, uma das principais anomalias da democracia portuguesa – a ausência de entendimentos à esquerda – está a ser ultrapassada. 

Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental
Imagem: Sapo24

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Quebrar Tabus

Se há uma semana atrás alguém se atrevesse a prever um cenário de negociação dos partidos da esquerda, seria com certeza considerado um romântico. Conceber há uma semana atrás que o PS, PCP e Bloco estariam sequer a discutir tal possibilidade era um autêntico lirismo. E, para sermos precisos, com excepção do LIVRE/TEMPO DE AVANÇAR, nenhuma força política deu o devido relevo a esta possibilidade durante a campanha eleitoral. No entanto, para espanto de todos, é precisamente este cenário que estamos a viver.

Durante 40 anos, fruto sobretudo dos tempos do PREC e do status quo que de então para cá prevaleceu, a esquerda nunca conseguiu entender-se e constituir uma maioria que suportasse uma solução governativa. Aliás, os diversos sectores da esquerda procuraram quase sempre afirmar-se por oposição entre si. Conceber entendimentos, pontes ou denominadores mínimos comuns correspondia a não conhecer o sistema partidário português e os seus protagonistas. Entendimentos à esquerda era algo perfeitamente normal na vasta maioria dos países europeus, assumindo-se embora como uma autêntica impossibilidade a nível nacional.

No entanto, podemos estar hoje a assistir a um virar de página sobre esta questão. Tal como aconteceria na vasta maioria dos países europeus, decorrem reuniões entre as forças políticas à esquerda para aferir sobre uma possibilidade de entendimento. E as reacções dos mais diversos quadrantes têm sido bastante interessantes. À esquerda, os posicionamentos variam entre uma profunda apreensão e a possibilidade de estarmos a viver um momento histórico. Na direita política, como é natural, procuram-se todos os argumentos para demonstrar que um entendimento à esquerda não é viável para o país. 

Curiosamente, instalou-se até a pretensa discussão sobre se um entendimento à esquerda e um Governo que daí emanasse corresponderia a uma espécie de “golpe de secretaria”, uma vez que foi a coligação PSD/CDS a força política mais votada. Estranha discussão esta que parece ignorar que, em Portugal, temos um sistema representativo em que o Governo emana de uma maioria parlamentar. Assim sendo, se existir uma maioria parlamentar que suporte o referido Governo, qual é a questão?

Como é evidente, as presentes negociações entre o PS, a CDU e o Bloco poderão não resultar numa maioria ou num entendimento que suporte um Governo de Esquerda. Por mais desejável ou indesejável que o presente cenário se afigure, todos podemos reconhecer que é pouco provável que tal possa acontecer já na presente legislatura. Trata-se de um cenário complemente novo, os respectivos líderes partidários demonstram ainda estar pouco confortáveis com o mesmo, as máquinas partidárias também estão bastante surpresas com o evoluir dos acontecimentos. Se a isto adicionarmos uma comunicação social que ainda não sabe bem como lidar com o tema, verificamos que as hipóteses de sucesso são reduzidas. E, na verdade, é pena que PS, CDU e Bloco tenham desenvolvido grande parte da campanha eleitoral a excluir-se mutuamente. Podiam melhor ter preparado o país para este tipo de cenário, minimizando assim a apreensão que se faz sentir em alguns sectores.

De qualquer modo, se deste processo não resultar um Governo suportado por uma maioria de esquerda, a caminho feito já está a quebrar enormes tabus. O facto do cenário estar efectivamente em cima da mesa e de estar a gerar expectativas no eleitorado demonstra que, se não agora, no futuro a procura de entendimentos poderá ser algo relativamente normal. Na pior das hipóteses, será uma possibilidade a não excluir à partida. O diálogo em curso poderá estar a fazer escola. Se assim for, eis uma grande vitória. A democracia portuguesa e o sistema de partidos em Portugal estarão a ultrapassar uma das suas maiores anomalias.

Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental
(Imagem retirada aqui)

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Livre / Tempo de Avançar - O que correu mal, o que correu pior e os detalhes que fazem a diferença


O LIVRE/TEMPO DE AVANÇAR foi um dos grandes derrotados da noite eleitoral. Eleger dois deputados não era deslumbrante, mas seria um bom resultado. Eleger um deputado era o mínimo dos mínimos. Não eleger, não chegar sequer aos 1% e ficar-se pelos 40 000 mil votos foi um murro no estômago. Sobretudo para quem, como eu, empenhou-se fortemente nesta candidatura. Uma derrota pesada. Demasiado pesada.

Como foi possível? Com tantos notáveis a apoiar, com gente qualificada e de áreas e quadrantes diversos envolvida? Com um programa eleitoral notável?

O que correu mal?

Poderia apontar várias mãos cheias de explicações que contribuíram para o mau resultado: 1) a inexperiência e débil implantação de uma candidatura que nasceu há poucos meses; 2) o desempenho extraordinário de um partido com quem disputa parte do eleitorado (o Bloco); 3) a eficácia duvidosa nos métodos utilizados, como as primárias para escolha de todos os candidatos, elaboração conjunta do programa eleitoral. E muitas outras explicações poderiam aqui ser enumeradas.

Mas destacaria uma dimensão que me parece preponderante: para uma candidatura tão recente, movendo-se num terreno tão competitivo e dirigindo-se a uma fatia do eleitorado tão exigente, faltou-lhe foco na comunicação externa. Faltou-lhe uma mensagem forte, clara, simples e distintiva que, repetida até à exaustão, pudesse ter ganho espaço na agenda da campanha e concedesse a notoriedade necessária ao LIVRE / TEMPO DE AVANÇAR. Paulo Portas passou a campanha a repetir até à exaustão que o Governo devolveu a independência ao país, Passos insistiu na retoma, Catarina Martins fundamentou bem porque era contra a austeridade ao mesmo tempo que abriu as portas a um entendimento com o PS.

Faltou ao LIVRE / TEMPO DE AVANÇAR uma mensagem que o permitisse distinguir inequivocamente das restantes forças políticas, assumindo-se como a sua carta de apresentação. O facto de ser uma candidatura inovadora, com primárias abertas e com um programa elaborado colaborativamente é algo muito positivo, mas pouco eficaz em termos comunicacionais no contexto atual. A unidade à esquerda pode ser bem explorada, mas não deixa de ser um tema difícil de explicar, sobretudo quando outros a utilizam também, embora em modo bullshit.

Não conseguímos impor-nos no muro da informação e desinformação de uma campanha particularmente agressiva. 

O que correu pior?

Numa eleição em que várias forças políticas concorreram pela primeira vez, por mais estruturado e fundamentado que fosse o nosso programa, por mais competentes e reconhecidos que fossem os nossos candidatos, o LIVRE / TEMPO DE AVANÇAR foi imediatamente colocado no campeonato dos “outros”. E este campeonato é totalmente diferente, a começar na cobertura mediática que as várias forças políticas têm acesso.Por mais estéril que fosse a sua acção, PàF, PS, Bloco e CDU tinham sempre garantido o seu espaço na comunicação social. Em todas os jornais, rádios e TVs, entrevistas ou debates, os partidos com assento parlamentar beneficiaram de um estatuto invejável em termos de exposição. Não estou assumir que é uma injustiça que assim seja. Apenas constato um facto.

Pelo contrário, os “Outros” tiveram sempre que correr por fora. Sem cobertura garantida, sem meios para grandes acções, o campeonato foi de facto outro, tornando-se particularmente difícil passar a mensagem a um eleitorado já confuso e cansado de tanta proposta, de tanto logotipo, de tantas novidades. Mesmo o eleitorado mais esclarecido tinha dificuldade em não confundir o LIVRE/TEMPO DE AVANÇAR com o AGIR ou outras forças políticas como o “Nós Cidadãos”. Quando assim é, estamos ainda próximos da estaca zero da comunicação, i.e., o eleitorado saber que existimos e conseguir-nos distinguir minimamente de outras forças políticas.

Para furar este cerco de comunização, uma das hipóteses fortes passa por desenvolver acções de marketing viral ou de guerrilha. Ações que, com o timing perfecto e com o ângulo certo, podem fazer mais do que dezenas de arruadas ou de sessões de esclarecimento. Entregar caixas de pizzas com programas eleitorais foi um bom exemplo a este respeito.

Os detalhes que fazem a diferença

O cenário acima seria catastrófico para a maioria das forças políticas. Mas alguns pequenos detalhes deverão ser tidos em consideração antes de se ditarem sentenças fatais e as inevitáveis certidões de óbito que sempre surgem nestes momentos. Quando se faz política por genuína convicção, de forma descomprometida, como expressão de activismo e de urgência social, não é fácil desmobilizar. Precisamente porque cada derrota sublinha ainda mais a necessidade e urgência de seguir em frente. E tal acontece sobretudo quando estamos muito confortáveis e admiramos quem nos acompanha, quando estamos absolutamente convencidos sobre o que nos move e quando acreditamos na estratégia seguida. 

O LIVRE / TEMPO DE AVANÇAR foi arrojado a todos os níveis. Fez tudo o que “os manuais” não recomendariam que fizesse nesta fase. Arrancou com um congresso fundador onde qualquer cidadão pôde participar ativamente. Escolheu todos os seus candidatos a deputados através de primárias diretas. Desenvolveu o seu programa eleitoral com base num processo participativo aberto a todos os cidadãos.

Esse arrojo permitiu-lhe trazer para junto de si cidadãos de quadrantes muito diferentes da esquerda política. Gente que nunca tinha tido qualquer envolvimento político, outros que o deixaram de ter há muito, outros ainda (o meu caso) que encontraram aqui as vontades para fazer algo verdadeiramente diferente. Esta candidatura foi construída do zero, com o esforço de cada um, sem directórios, tendências ou eminências pardas a apontar o caminho. Algo genuíno e profundamente inovador. Não é fácil mandar algo assim abaixo. Nem mesmo um péssimo resultado eleitoral

Desengane-se quem acha que este é um movimento de notáveis. É possível que sejam “apenas” cidadãos com vontade de mudar o país e, porque não, o mundo. Coisa pouca, portanto.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

5 notas sobre as Eleições


1 - As expectativas baixas podem ser um poderoso aliado
Partir para algo com baixas expectativas pode ser desmobilizador para as hostes. Mas se tudo for gerido de forma meticulosa, como de facto aconteceu com o PSD/CDS, evitando todo e qualquer erro, aos poucos pode rapidamente criar-se uma dinâmica poderosa. A ausência de favoritismo diminui a pressão. Para além disso, o "povo" simpatiza com reviravoltas e estas tornam a coisa muito mais interessante para a comunicação social.

2 - As eleições não se ganham. Perdem-se
E foi de facto isto que aconteceu ao PS. Os erros sucederam-se ao ponto de se ver envolvido numa espiral que já não se conseguiu livrar. O que era uma autêntica passadeira transformou-se aos poucos, e sem que o próprio percebesse, num caminho onde as espectativas elevadas foram minando cada passo. O "povo" e os media gostam de ver um Golias cair. 

3 - Surpresa
O Bloco foi, sem dúvida, a surpresa da noite. Mesmo as perspectivas mais positivas não faziam antever uma subida tão vertiginosa. Beneficiou de um eleitorado que não gostou de ver o PS a hesitar. Mereceu o resultado porque Catarina Martins não falhou e surpreendeu até nos momentos chave.

4 - Diz que é uma espécie de "sustentabilidade"
Apesar do PCP ter subido na votação, soube a pouco quando comparado com o Bloco. De qualquer modo, importa ter presente que o votante comunista é muito menos volátil do que a fatia do eleitorado que agora flutuou para o Bloco. 

5 - Os outros
Por mais engraçados, sérios ou inteligentes que possam ser, o campeonato dos outros é um campeonato diferente. Sem meios e, sobretudo, com uma cobertura mediática à parte, têm de correr por fora. As regras são outras.

¨*Dedicarei o próximo post ao resultado do  LIVRE/TEMPO DE AVANÇAR.