“Exmo. Sr. Primeiro-Ministro
Fomos recentemente surpreendidos com a possibilidade do Estado abrir mão de uma série de empresas públicas: CTT, REN, TAP, ANA, CP, EDP, entre outras. Enquadrado pelo PEC, o seu Governo traça agora um caminho diferente do que submeteu a sufrágio há uns meses atrás, altura em que as contas públicas não eram certamente suas desconhecidas, nem o cenário económico internacional mais favorável do que o verificado actualmente. Porquê então esta mudança de face tão significativa? Porquê uma face keynesiana antes das eleições e uma face neoliberal poucos meses depois. Confesso não ter sido seu eleitor, mas suspeito que estes se sentirão profundamente enganados a este respeito.
Esmiucemos então o caso emblemático dos CTT, que possui contornos chocantes. Importa referir em primeiro lugar que se trata uma empresa pública que dá lucro. Ou seja, constitui uma fonte de receita para o Estado. Não pode, portanto, ser acusada de contribuir para défice. No momento actual, aponta-se a sua privatização para se poder amortizar os juros da dívida pública. Mas o normal funcionamento da empresa garante lucros que em poucos anos superam o valor que o Estado receberá agora pela sua privatização. Enfim… Há racionalidades intrigantes nestes negócios que certamente escapam ao comum dos mortais.
Mas, para lá da questão da rentabilidade, os CTT desenvolvem um serviço estratégico de inegável interesse público de norte a sul do país, no continente e ilhas. Da entrega de correspondência ao pagamento das pensões, à possibilidade de serem pagas as contas da água e da luz, de carregar o telemóvel, entre muitos outros serviços, os CTT prestam um conjunto de serviços importantes, nomeadamente junto dos sectores mais idosos da população. Os mais de 1000 balcões constituem um invejável instrumento de coesão territorial que chega aos locais mais remotos do país. Foram os imperativos de serviço público que levaram à criação de tal rede, subjugando naturalmente a questão da rentabilidade às necessidades efectivas das populações.
Colocando-se agora um cenário de privatização, alguém acredita que a rede dos CTT se manteria intacta? Muitas estações não resistirão aos imperativos de rentabilidade, sobretudo as que se encontram em pequenas localidades, distantes dos grandes centros urbanos. A tentação de as encerrar acontecerá com certeza. Eis um exemplo de como a prossecução do interesse público por entidades privadas possui naturais limitações. Alguns argumentarão que tal tentação não se colocaria porque o modelo de privatização passaria por o Estado suportar os custos de tais serviços não rentáveis. Mas, admitindo tal estratégia, estaríamos então a privatizar os lucros e a nacionalizar os prejuízos, um negócio com uma racionalidade no mínimo duvidosa.
Sobretudo pelas razões acima referidas – prestação de um inegável serviço público que ainda por cima é uma fonte de receita do Estado – a privatização dos CTT é uma medida que merece, no mínimo, ser seriamente questionada. Cá estamos para o efeito, aguardando ansiosamente os seus esclarecimentos. Porque o rumo que V. Exa. nos oferece é de tal forma incompreensível que, como compreenderá, nos sentimos por vezes tentados a considerá-lo inatingível pelo comum dos mortais.
Obrigado,
João Ricardo Vasconcelos”
Este artigo sobre a privatização dos CTT, em forma de carta, foi escrito há mais de três anos e meio no portal agora desaparecido www.correiopublico.net, no âmbito de uma campanha promovida pela ATTAC Portugal. O argumentário continua atual. Apenas o destinatário mudou: na altura tínhamos José Sócrates, hoje temos Passos Coelho. É bom lembrar estes pormenores ao PS, verdadeiro campeão do Estado Social keynesiano nos tempos que correm. O PS que anda hoje muito indignado com a privatização dos CTT. Pois é, há muita falta de memória… Comentários para quê?
João Ricardo Vasconcelos