Se não existirem surpresas de maior, António Costa liderará o próximo Governo Constitucional. Depois de uma saga que dura há várias semanas, com os prognósticos a mudarem de dia para dia, parece ser finalmente este o desfecho mais provável. Não será um Governo de Esquerda, como desde o primeiro dia começou por ser apelidado por muitos. Será sim um Governo do PS com o apoio dos partidos da esquerda parlamentar. Um pequeno detalhe que faz evidentemente toda a diferença.
Um Governo de Esquerda exigiria, desde logo, que existisse um entendimento pré-eleitoral entre as forças políticas. Não necessariamente uma aliança pré-eleitoral, mas pelo menos um compromisso assente em linhas programáticas comuns, devidamente apresentado e clarificado perante o eleitorado. Algo que demonstrasse o alinhamento dos partidos da esquerda, as pontes e os denominadores comuns chegados em diversas áreas, e que se materializariam depois num determinado programa de Governo. Este tipo de plataforma de entendimento prévio teria sido fundamental para que o eleitorado estivesse desde logo plenamente consciente do alinhamento das forças políticas em causa.
Ora, gostemos ou não, a forma como foi construído o actual entendimento PS-BE-PCP-PEV foi bastante diferente do cenário acima. Na verdade, foi um processo que surpreendeu tudo e todos. Se Costa, Catarina e Jerónimo estiveram bem em reagir imediatamente ao resultado eleitoral, colocando desde os primeiros dias em cima da mesa o que estava a ser construído, a verdade é que o cenário entretanto desenvolvido era muito pouco evidente antes de 4 de Outubro. A direita política foi surpreendida, os comentadores também, assim como o eleitorado. E parece evidente que nem os militantes dos referidos partidos deixaram de acolher com surpresa (a maioria positivamente, mas nem todos) os esforços de entendimento empreendidos.
De qualquer modo, apesar das conhecidas fragilidades do processo constitutivo do entendimento à esquerda, tudo indica que a experiência governativa que ai vem será provavelmente das mais interessantes da nossa democracia. A busca de compromissos obrigará cada um dos quatro partidos da esquerda a ter de conciliar a sua matriz programática com a evidente necessidade de compromissos. Terá de conciliar as grandes expectativas do seu eleitorado com a necessidade de manter uma solução governativa que dependerá sempre de um esforço comum. Com naturais e suportáveis riscos associados, veremos a democracia a funcionar no seu melhor.
Por outro lado, a experiência governativa que aí vem não deixará de ser promissora porque, pela primeira vez, a esquerda abandona em força a confortável posição de costas voltadas das últimas décadas. E agora nada poderá ser como antes. As expectativas estão criadas, demonstrou-se contra a opinião de muitos que um entendimento é possível e os dados estão lançados para que, no futuro, o referido entendimento possa acontecer inclusive com maior robustez. Uma página importante da democracia portuguesa encontra-se prestes a ser virada.
O Governo de António Costa será a maior prova de fogo para a esquerda portuguesa dos últimos anos. O sucesso do entendimento à esquerda abrirá com certeza a porta a futuros entendimentos, a nível central ou mesmo local. Por seu turno, o seu insucesso implicará danos em cada uma das forças políticas e estenderá uma passadeira vermelha a uma maioria absoluta PSD-CDS.
Não há espaço para falhas nos tempos que aí vêm. A esquerda estará com certeza à altura da oportunidade que todo este processo abriu.
Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental
PS: Artigo escrito antes de ser conhecida a resposta de António Costa às 6 questões ontem colocadas por Cavaco Silva.
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