Quando Pedro Passos Coelho fez campanha sob o lema “andamos a viver acima das nossas possibilidades”, foi considerado corajoso por o afirmar. E a coragem tem sido uma das características que mais lhe tem sido atribuída, não só pelos seus partidários, mas também por comentadores e outros opinion makers de quadrantes diversos. O acto de pedir (ou exigir, melhor dizendo) sacrifícios é considerado corajoso. Mais recentemente, tal adjectivo foi atribuído ao primeiro-ministro quando este anunciou o corte dos subsídios de Natal para 2012 e 2013. Foi também considerado corajoso o facto de Passos ter reconhecido na semana passada que o país tem de “empobrecer” para conseguir sair da crise.
Como é evidente a noção de coragem varia de quadrante para quadrante. E estranho seria se assim não fosse. Mas existe uma tendência quase congénita na análise política para considerar corajosa a tomada de medidas que cortam direitos ou regalias existentes. Importa portanto demonstrar um pouco o quão inviesado é tal raciocínio.
Façamos uma análise sobre a coerência ou não de tais medidas com o perfil ideológico das diversas forças políticas, começando por assumir que o que é corajoso para um liberal poderá não o ser para um social-democrata e vice-versa. Assim sendo, será que é corajoso um governo com um perfil liberal cortar nas prestações sociais? Dado o alinhamento de tais medidas com o seu pensamento político, podemos dizer que um liberal que corta benefícios sociais é tão corajoso como um social-democrata que os aumenta. E aumentar a taxação sobre os rendimentos do trabalho, ao mesmo tempo que se isenta as mais-valias de capital, será um liberal corajoso por o fazer? Diríamos que é um acto tão corajoso para um liberal como um social-democrata defender a taxação das grandes fortunas. Ou seja, considerar que medidas em perfeita sintonia com o pensamento político dos respectivos autores são corajosas é algo bastante paradoxal.
E a suposta coragem das medidas em curso parece também não resistir à análise do contexto que as rodeia. Tomemos como exemplo a actual governação. No fundo, considera-se corajosa a adopção de medidas que nos estão a ser impostas em diversas frentes. Impostas pelos restantes Estados-membros europeus e impostas também pelas mesmas organizações internacionais que suportam o sistema financeiro internacional altamente desregulado que nos trouxe até aqui. Considera-se corajosa a adopção de uma receita cujos resultados estão à vista na Grécia. Por último, considera-se corajosa uma estratégia apostada em por a casa em ordem, embora seja practicamente consensual que não foi por a casa está em desordem que os mercados resolveram atingir-nos.
Tal como referido acima, a coragem depende naturalmente da perspectiva que temos das coisas. A meu ver, coragem seria não só pensar, mas agir assumindo que esta crise não pode ser enfrentada jogando apenas no tabuleiro nacional. Uma actuação firme no contexto europeu, lançando pontes para uma acção con junto com os outros países caidos ou a caminho de cairem em desgraça, isso sim parece-me uma estratégia corajosa, precisamente por tentar remar contra a maré. Bater-se firmemente para que a Europa consiga fazer valer o seu peso a nível internacional exigindo que o sistema financeiro internacional seja rapidamente regulado, isso sim parece-me uma estratégia com alguma coragem. Quanto ao rumo abraçado pelo actual Executivo, confesso não perceber como o seguidismo pode ser considerado corajoso.
Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental