Num momento como o atual, falar em ter direito à qualidade de vida soa a algo totalmente lunático. Numa altura em que o “vivemos acima das nossas possibilidades” é a nova máxima nacional e a acusação suprema da vida pecaminosa que até agora os portugueses têm vindo a levar, falar em direitos já é ser excêntrico. Falar em direito à qualidade de vida é ser doido varrido. Um atrevimento insuportável perante a purificação nacional em curso.
No entanto, a questão da qualidade de vida está longe de ser um ideal político novo. Nas sociedades do pós-guerra onde o Estado Providência se desenvolveu e os cidadãos adquiriram direitos sociais que lhes permitiram pensar além da simples sobrevivência do dia-a-dia, novos valores se impuseram naturalmente. Valores ecológicos, valores espirituais, valores de igualdade e de não discriminação (contra o racismo, contra a xenofobia, contra a homofobia), eis alguns dos que ficaram conhecidos como valores pós-materialistas. Valores que, no fundo, apoiando-se em direitos adquiridos nos domínios da saúde, da educação ou da segurança social, procuram ir mais além. Entrou-se assim num estágio de desenvolvimento em que algo tão supremo como o conforto, o bem-estar ou mesmo a felicidade passaram a ser legitimamente perseguidos por cada cidadão.
Nos tempos que correm, recordar esta evolução que se começou a esboçar há 50 anos é totalmente contra-corrente. Aliás, criada a convicção do “vivemos acima das nossas possibilidades”, a tendência é para sermos empurrados a achar que o modelo de sociedade preconizado nestas últimas décadas foi irresponsável, lunático e até pecaminozo. Que essa coisa das pessoas quererem melhorar as suas condições de vida, de quererem viver melhor que os seus pais, de quererem ter acesso ao lazer, à cultura e a perseguir a felicidade, são luxos que devemos depressa abandonar. Acreditar na coesão social passou a ser um luxo. Acreditar numa sociedade com o limite das 35 ou 40 horas de trabalho passou a ser um luxo. Acreditar que alguém se deve reformar aos 65 anos passou a ser considerado um luxo. Ou seja, põem-se em causa progressos civilizacionais sem pestanejar. Como se fosse essa a raiz do problema da atual crise.
Como é sabido, mas às vezes esquecido, a crise em curso teve como primeira origem um sistema financeiro internacional totalmente desregulado, assente em especulação cuja única racionalidade baseia-se na gestão de espectativas e de nervosismos dos mercados. No entanto, em vez de se actuar em tal problema estrutural, procurando regulação para que os Estados e as vidas dos cidadãos estejam menos expostas a tal casino financeiro, opta-se por aplicar perigosas receitas de austeridade. Como se fosse possível resolver um problema apenas a jusante, deixando intocável o que se passa a montante.
Assim sendo, não confundindo direitos sociais com luxos ou progresso com pecado, se calhar não faz sentido abrir mão assim tão facilmente dos importantes avanços civilizacionais das últimas décadas. Sim, por mais excêntrico que possa parecer, estamos a falar de legítimas aspirações dos cidadãos à dignidade, perseguindo a sua felicidade, a sua realização, procurando um mundo melhor, com mais qualidade de vida, mais coeso, com menos desigualdades, com espaço para todos. Tudo isto são avanços civilizacionais que, como é natural, mais do que ser negados e censurados, deviam sim ser defendidos e até aprofundados. Pelo contrário, parecemos quase todos empenhados em pedir desculpa pelos progressos económicos, sociais e culturais ocorridos nas últimas décadas.