Quando parecia que a região já tinha ido a banhos, o Presidente da Câmara Municipal da Povoação, faz uma dura crítica ao Governo Regional dos Açores pelos atrasos na execução da Carta Regional das Obras Públicas. Carlos Ávila, histórico do PS no arquipélago, manifestou igualmente em tom inflamado grandes dificuldades em conseguir dialogar com o Governo da Região. Este tipo de episódio não constitui em si mesmo nada de muito extraordinário. Um presidente de uma Câmara mostrar-se desagradado com uma estrutura governamental de âmbito regional ou nacional do mesmo partido é relativamente normal. Diria até que é salutar mostrar externamente que, apesar de Câmara e Governo serem da mesma cor política, existem ideias diferentes, existe diversidade de pensamento. O que tornou este episódio deliciosamente insólito foi o que se seguiu.
A Associação de Municípios da Região Autónoma dos Açores (AMRAA), liderada também por um autarca socialista, resolveu demarcar-se prontamente das declarações do autarca da Povoação, considerando que as mesmas tiveram “um teor ofensivo”, sublinhando que “não podem ser toleradas atitudes deste género por parte de nenhum dos autarcas da região”, uma vez que “a linha de cooperação mantida com o Governo Regional tem garantido importantes conquistas para o Poder Local dos Açores” (!?!). Ou seja, em vez de apoiar ou remeter-se ao silêncio caso discordasse (alternativas típicas neste tipo de situações), a Associação que representa os municípios dos Açores decidiu sair rapidamente em defesa do Governo Regional, assumindo as dores do mesmo e criticando ferozmente o presidente de um dos seus municípios. Foi um gesto bonito…
O episódio acabou por ter seguimento, com a Câmara da Lagoa, também socialista, a solidarizar-se com a Câmara da Povoação e a condenar o “gravíssimo” precedente da AMRAA por “colocar em causa uma relação de lealdade institucional a que está obrigada para com os seus associados”. Por ser turno, o presidente da Câmara Municipal de Vila Franca do Campo, Ricardo Rodrigues, decidiu também assumir a defesa do Governo Regional, ao considerar que a Associação de Municípios não tem dever de solidariedade com o Presidente da Câmara da Povoação. O ex-Secretário Regional e ex-Deputado à Assembleia da República lembra que os dois níveis de poder - Administração Regional e Local - são “autónomos” e, da mesma maneira que “não aceitaria que o Governo Regional criticasse o poder municipal”, também não aceita o inverso (?!?). Ricardo Rodrigues, o grande campeão do diálogo e da concertação.
A insólita troca de galhardetes acabou por ter um rápido final feliz, com o anúncio na semana passada da adjudicação pelo Governo de uma empreitada na Ribeira Quente prevista na Carta Regional das Obras Públicas.
Podem naturalmente ser retiradas várias conclusões do episódio acima. Sublinharia sobretudo o facto de se passar entre responsáveis de um mesmo partido que neste momento domina não apenas o Governo Regional, mas também a vasta maioria dos municípios. O referido cenário hegemónico acaba por proporcionar este tipo de insólitos. Não só uma suposta oposição acaba por surgir no seio do próprio PS, como as lealdades partidárias acabam por gerar disfuncionalidades institucionais entre órgãos de poder. Neste caso, tivemos Câmaras opondo-se a Câmaras do mesmo partido, dividindo-se entre ortodoxos e heterodoxos do Governo Regional.
O facto do partido estar em todo o lado acaba por fazer com que os seus atores políticos se confundam nos papeis que devem desempenhar. Uma vez que competição eleitoral deixou de os preocupar pelas conhecidas debilidades da oposição, o seu quadro de referência passa a ser as lutas internas do próprio partido. Sintomas de partido hegemónico. Sintomas de partido (quase) único.
Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental
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