O debate público sobre a Reforma do Estado parece ter-se instalado. O relatório do FMI apresentou inocentemente uma série medidas para equilibrar as contas públicas, propondo o corte da módica quantia de 4 mil milhões de euros na despesa do Estado. Também inocentemente, no início da semana passada, o Primeiro-Ministro promoveu uma conferência sobre o tema em questão. Pelos vistos, algo tão sensível que até obrigou a tristes restrições à cobertura jornalistica. Sempre ao abrigo de que não existem tabus e de que tudo deve ser discutido, têm-se sucedido as análises e trocas de galhardetes sobre este tema quente. O presente artigo é apenas mais um inocente contributo para a referida discussão.
Os momentos de crise levam a que naturalmente tudo possa ser posto em causa. Para o bem e para o mal, acabam por ser momentos com um verdadeiro potencial revolucionário. As posições extremam-se, exigem-se soluções com uma urgência gigantesca e a predisposição de todos os setores para a mudança é mais do que significativa. Nem sequer é necessário citar Marx para se tornar claro para todos que estes são momentos-chave para introduzir mudanças. O que, numa altura dita normal, poderia levar anos a reformar, estudando-se prós e contras, discutindo-se e buscando entendimentos, consegue nestes períodos ser alterado do dia para a noite.
E é naturalmente tendo isso em mente que uma série de setores aparecem agora empenhados em tudo discutir. Setores que, tendo sempre sentido desconforto sobre a missão assumida pelo Estado e pela forma como a mesma era cumprida, vêem no momento presente uma oportunidade para fazer valer a sua agenda. E que agenda é essa? A de um Estado com funções bastante mais limitadas nos domínios sociais, nomeadamente na saúde, educação e segurança social, deixando muito maior espaço para a iniciativa privada na prestação de serviços públicos. Um Estado bastante mais leve, com menos funcionários, com menos orçamento e com menos intervenção económica, libertanto a sociedade civil da carga fiscal que a asfixia e deixando ao mercado todo o papel de liderança e equilibrio económico. Uma agenda liberal, no fundo.
Mas, não querendo de modo algum minimizar a importância e a viabilidade de discussões como a que agora se procura fazer, o atual contexto dificilmente propiciará um ambiente minimamente sereno para esta discussão se processar. As posições extremaram-se, e os consensos ou as soluções de compromissos passaram a ser uma miragem. Neste contexto, achar que se pode ter uma discussão minimamente séria sobre as funções do Estado no atual panorama só pode revelar uma de duas coisas: lirismo infantil ou tacticismo profundo. Em linha com o acima exposto, acho naturalmente muito mais provável a segunda hipótese, procurando-se aproveitar o atual momento para fazer passar uma determinada agenda política. No fundo, atores políticos a comportarem-se como atores políticos que são. Nada de novo portanto.
Estranho seria se fosse considerado de mau tom alguns setores procurarem discutir a reforma do Estado no momento atual. É sempre tempo de discutir o Estado, as suas funções, o seu papel na sociedade. A política em democracia assim o exige. Mas a referida discussão deve ser feita com o mínimo de seriedade de parte a parte. Como é evidente, não podemos esperar que surja o momento perfeito, os atores perfeitos e as razões perfeitas para que uma discussão saudável se processe. Mas aproveitar descaradamente o atual momento de caça às bruxas da despesa e do desperdício para, de forma opaca e nada esclarecedora, fazer passar uma agenda política com impactos tão estruturais, parece-me no mínimo politicamente desonesto e perigoso até.
Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental
Imagem: Há vida em mark
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