terça-feira, 2 de abril de 2013

O Grande Narrador



Sim, lamento mas este é mais um artigo, mais um comentário, mais uma opinião sobre a entrevista de Sócrates. É de facto impossível passar ao lado da entrevista de um ex-primeiro-ministro que se remeteu ao silêncio há quase dois anos atrás, apenas se sabendo que foi estudar para Paris. E é sobretudo inconcebível não comentar a entrevista de alguém a quem são atribuídas tão grandes responsabilidades pela situação atual do país. Sócrates voltou, é um facto, e voltou igual a si mesmo. Voltou também, como muitos entretanto sublinharam, para fazer política e não para comentar a política. Muitos pontos podiam ser sublinhados nesta entrevista. Optaria por destacar dois aspetos que me parecem determinantes.

Em primeiro lugar, foi interessante verificar o maniqueísmo que ressurgiu em torno das suas responsabilidades quanto ao estado a que o país chegou. De um lado, a direita política que durante estes dois anos não se cansa de sublinhar que “a culpa é do Sócrates”. A culpa por todo o endividamento do país? Do Sócrates, claro. A culpa do país ter caído na desgraça dos mercados e sofrido uma intervenção externa? Evidentemente do Sócrates. E a austeridade a que hoje estamos sujeitos, com cortes nos salários, desemprego em alta e uma economia verdadeiramente esfrangalhada? Tudo culpa Sócrates, de quem poderia ser? Não é pois de estranhar que a forma como desconstruiu esta “narrativa” tenha sido tão elogiada por uns e tenha gerado tanto desconforto perante outros.

Como hoje todos os factos demonstram, mas como era já evidente há dois e até há três anos atrás, a crise financeira internacional gerou dinâmicas incontroláveis por qualquer governo nacional. Perante a especulação frenética dos mercados financeiros, que atacam qualquer economia guiados apenas por uma racionalidade de casino, a margem de atuação de qualquer governo é limitada. Atribuir portanto a responsabilidade e as consequências destas dinâmicas aos Executivos nacionais é perfeitamente redutor e populista até. O ex-primeiro-ministro esteve bem a desmonstar a referida narrativa de que “a culpa é do Sócrates”. Mas importa sublinhar que o fez de forma exatamente igual à utilizada na campanha para as legislativas de 2011. É portanto anedótico e sintomático da falta de memória o súbito brihantismo que lhe é atribuído a este respeito...

Mas é na explicação da crise política que levou ao fim do seu governo que Sócrates mais patinou, demonstrando que ele próprio não conseguiu descolar da sua própria narrativa. Segundo o ex-primeiro-ministro, o PEC 4 era a solução que o país precisava, que até já tinha sido negociada com a Comissão Europeia. Mas a malvada oposição encarregou-se de deitar fora tal oportunidade, mergulhando o país numa crise política. Esqueceu-se de dizer apenas alguns detalhes: que a forma como conduziu o processo do PEC 4, sem sequer informar a oposição ou até o Presidente da República, foi verdadeiramente kamikaze. Sabia evidentemente que daquela forma o PEC 4 nunca seria aprovado, i.e., sabia que com aquela jogada haveriam eleições antecipadas.

E esta sua linha de argumento sobre o PEC 4 chega a meter dó pela fragilidade que encerra. Por um lado, omite o facto dos PEC serem já a face visivel de uma política austeridade que vinha crescendo aos olhos de todos. Ou seja, os PEC foram os primeiros passos no “escavar” que agora tanto horroriza Sócrates. Por outro lado, ao ritmo que o seu governo apresentou novos PEC, se não tivesse entretanto caído, estariamos hoje provavelmente a discutir o PEC 20. 

Sócrates é um bom comunicador? É. A culpa da crise não foi toda dele? Claro que não. Os zigue zagues da sua entrevista demonstram que continua a ser alguém a quem eu não compraria nem um porta-chaves? Pois... Mas sim, é um grande narrador, sem dúvida.

Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental

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