sexta-feira, 10 de maio de 2013

A Justiceira



Austeridade que é austeridade tem de bater forte e feio nos funcionários públicos. Com mais ou menos subsídio de férias, utilizando de forma mais ou menos descarada a equiparação com os regimes do privado, há que sacar direitos à função pública, dê por onde der. De outro modo, qualquer política estrutural que o atual Governo proponha não merece a digna honra de ser apelidada de reforma. Aliás, nas cabecinhas brilhantes da nova e velha direita, o funcionário público é uma espécie de carraça que não deixa este nobre país crescer. Eis a direita justiceira. Há, portanto, que “otimizar”, “racionalizar” e “equiparar” esta cambada de privilegiados e instalados na vida que não deixa as coisas irem para a frente.

Curiosamente ou não, não vou aqui lamentar a perda de direitos (subitamente transformados em privilégios) de um conjunto alargadíssimo de trabalhadores deste país, com todas as consequências que tal trará nas suas vidas e das suas famílias. Nem acho necessário entrar por aí. Sublinho sim o efeito terrível que este tipo de medida sobre os funcionários públicos acaba por ter sobre terceiros.

Por um lado, algo óbvio que parece ainda não ter entrado nas mentes monetaristas e justiceiras da nossa praça: mais até do que nos preocuparmos com a perda do poder de compra dos funcionários públicos, basta preocupar-nos com o efeito que tal tem no conjunto da economia do país. A contração no consumo tão alargada que este tipo de medidas provoca faz com que sejam sobretudo os empregos no setor privado que sejam imediatamente postos em causa. Quase não há setor de negócio que saia ileso deste tipo de contração: do café da esquina à grande distribuição, da construção civil ao comércio de automóveis, de vestuário ou de tecnologia. É sim complicado imaginar um setor que não é afetado por este tipo de medidas. Bater forte e feio nos funcionários públicos é bater forte e feio na economia do país.

Por outro lado a perda de direitos laborais dos funcionários públicos, seja no número de horas de trabalho semanais, na estabilidade no emprego ou no total de dias de férias, vem equilibrar negativamente o mercado de trabalho. Em primeiro lugar, porque se está a nivelar por baixo no que a direitos diz respeito, quando a tendência natural de qualquer sociedade que acredita no progresso devia ser precisamente a inversa. No que às 40 horas diz respeito, estamos a colocar-nos num patamar de direitos conquistados no século XIX. Comentários para quê? Em segundo lugar, não existindo estes regimes mais alargados de direitos na função pública como referência positiva, a tendência será para os regimes no privado se agravarem. Eis um exemplo claro sobre como a equiparação mal feita de regimes acabará por rapidamente voltar a prejudicar quem agora se pretende beneficiar.

De qualquer modo, há que tirar o chapéu à chico espertice destes senhores. Cavalgando sempre a suposta injustiça na atual equiparação entre os regimes público e privado, e assumindo-se como grandes justiceiros, têm conseguido fazer passar as suas ideias. Com maior ou menor conversa de café, a mensagem está enraizada, inclusive em setores menos suspeitos. Os resultados aí estão, competindo à esquerda desmontar algo que, apesar de aparentemente evidente, não é facilmente atingível pelo senso comum. A linha justiceira tem sempre audiência garantida.

Artigo hoje publicado no Esquerda.net

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