terça-feira, 17 de abril de 2012

É a ideologia, estúpido!

As ideologias continuam a desempenhar um papel importante no enquadramento do combate político nos países democráticos. Podem naturalmente apresentar-se de forma mais ténue do que o desejável, sobretudo no centro político, mas continuam a orientar de algum modo o discurso e a acção política. E em momentos de crise como os actuais, em que opções diversas têm de ser tomadas, a ideologia ganha uma nova centralidade. No entanto, como é evidente, os actores políticos não assumem desde logo a dimensão ideológica das suas acções. Apresentam-nas, pelo contrário, orientadas por critérios de eficiência, de harmonização, de justiça ou de melhoria das condições para os cidadãos, por exemplo.

Neste sentido, tem sido particularmente interessante verificar como o actual Executivo tem conseguido aplicar toda uma agenda de reformas profundamente ideológicas nos mais diversos setores. A ideologia liberal é latente quando se procura, por exemplo, fazer recuar o Estado na esfera económica ou quando se flexibiliza ainda mais o mercado de trabalho. A aplicação de uma agenda profundamente liberal como forma de combate à crise é hoje algo que o próprio Governo nem se esforça por esconder. Mas é também a ideologia de uma direita conservadora que muito se faz sentir por estes dias em algumas áreas da governação. A este respeito, o setor da segurança social é particulamente rico para analisar esta questão.

Numa semana, conseguimos ver Pedro Mota Soares a anunciar poupanças radicais no rendimento social de inserção (RSI), ao mesmo tempo que garantia que não iria mexer nos apoios à maternidade e que ia subir os apoios aos idosos. Trocado por miúdos, nada como aproveitar a crise para dar umas valentes machadadas no famigerado RSI, que só alimenta preguiçosos e delinquentes. Mas como bom homem de direita, o ministro não se cansa de apoiar a maternidade, defendendo assim a nobre família portuguesa. Nada também como apoiar os idosos, eleitorado potencialmente mais conservador e que consegue encontrar nesta direita do CDS alguns dos valores tradicionais que lhe são mais familiares. Claro que não se trata aqui de criticar o apoio à maternidade ou aos idosos, mas sim de descodificar o caráter ideológico das referidas opções.

E bem a propósito, nesta linha do conservadorismo político puro, foi também curioso ver Passos Coelho no Congresso do PSD Açores a falar na necessidade de “alterar estruturas económicas, políticas a sociais para que privilégios insjustificáveis não voltem a reposicionar-se na nossa sociedade”. O líder do PSD concretiza então dizendo que estas “estruturas perduraram ao longo de muitos anos e que mantiveram muitas vezes as pessoas na dependência do Estado e na pobreza. Dependentes, desde a criação de algumas prestações, da esmola que o Estado lhes dá.” Ou seja, o corte no RSI volta assim a ganhar destaque neste discurso do primeiro ministro.

Nesta linha do conservadorismo que utiliza a crise como alibi para acabar com alguns “desmandos sociais”, pouco depois do Governo tomar posse, também assistimos ao fim da comparticipação estatal na venda da pílula. Qualquer dia, temos este Executivo a querer acabar com as interrupções voluntárias da gravidez, ou com as aulas de educação sexual nas escolas, com o argumento de que temos de apertar o cinto... A crise é um momento onde a ideologia se faz sentir com particular intensidade. Não há mal nenhum nisso. Importa, no entanto, que os cidadãos saibam descodificar aquilo que lhes está a ser apresentado.

Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental

11 comentários:

Anónimo disse...

Caro João,

Afirmas aqui que as medidas do governo emanam de uma "agenda profundamente liberal."

Como explicar então a manutenção/reforço dos apoios à maternidade e aos idosos e a atribuição de subsidios de desemprego aos trabalhadores independentes???? Achas, sinceramente, que a transferência de fundos estatais para as famigeradas PPP's é uma política "profundamente liberal"???

Os casos (contraditórios) que aqui citas demonstram que a relação ideologia-política(s) (implementadas) não é linear. Ou seja, não se trata apenas da: "É a ideologia, estúpido!!"

Repara que não estou a argumentar que muitas das medidas do actual governo não são liberais. Diria apenas que a ideologia do governo e do PSD não é meramente liberal. Também é conservadora, como referes. O corporativismo, aspecto essencial da nossa cultura polítca, não morreu.

Estúpidez é nem sequer perceber que a ideologia não determina a acção política de forma linear e simplista. Todas as ideologias são profundamente afectadas pela realidade/situação política. O teu argumento assenta na premissa duvidosa que a ideologia é o único ou o mais importante critério político. É importante mas não deve ser absolutizada e transformada em causa única. A Suécia e o Canadá implementaram reformas liberais (antes da crise) mas não destruiram o estado social. Isto é, implementaram políticas económicas liberais para assegurar a manutenção do estado social.

Em suma, parece-me que as coisas são um pouco mais complicadas do que presumes.

Por outras palavras, diria que "é a complexidade, estúpido!"

Cumprimentos
Z

Anónimo disse...

+ 1 nota:

Podes citar um único caso em que a presença do estado na economia foi benéfica??????

Diogo disse...

Não existe qualquer ideologia. Apenas um roubo incomensurável perpetrado pela Grande Finança disfarçado de doutrina económica.

Anónimo disse...

Diogo,

Isaltino, Felgueiras, Jardim e Socrates (etc etc) são senhores da Grande Finança????

As dívidas das PPP's que serviram de asilo para os boys dos partidos dominantes (um bom liberal jamais concordaria com tal coisa) correspondem a 62 mil milhões da nossa dívida pública (de um total de 78 mil milhões). Foi a Grande Finança que criou as PPP's??? Não nutro grande simpatia pela grande finança mas parece-me mais sensato chamar os bois pelo nome.

Z

João Ricardo Vasconcelos disse...

Caro Z,

Lamento só agora responder.

Não gosto à partida de maniqueismos. De qualquer modo, colocar tudo no saco da complexidade parece-me igualmente redutor.

O que procuro mostrar no artigo é que os supostos casos contraditórios refletem, por um lado, uma ideologia liberal e, por outro, uma ideologia conservadora. O presente Executivo tem precisamente as duas facetas.

E respondendo ao teu 5º parágrafo, parece-me estupidez presumir que alguém acha que a acção política é ditada apenas pela dimensão ideológica. Não é isso que é dito e não percebo como o presumes.

Cmptos
Z

Anónimo disse...

Caro João,

Depois de ler o teu post, fiquei com a impressão de que não há duas facetas mas apenas uma, a da "agenda profundamente liberal" que se faz sentir no PSD e no CDS. ("Mas é TAMBÉM a ideologia de uma direita conservadora....") Uma agenda profundamente liberal não contemplaria os aspectos conservadores que mencionas nem as transferências de fundos estatais para PPP's defuntas. Estes casos que mencionas não podem ser simultaneamente profundamente liberais e conservadores. Logo, não se trata de uma agenda profundamente liberal mas de algo mais complexo.

"Não é isso que é dito e não percebo como o presumes."

Não o dizes explicitamente mas é isto e só isto que se pode presumir. Se leres o teu próprio texto com atenção certamente perceberás que a premissa do texto é a de que a ideologia, apesar das ofuscações deliberadas e instrumentais (apresentá-las como sendo orientadas por critérios de eficiência etc) dos actores políticos, é ditada principalmente pela ideologia. Isto é, se bem li o teu texto, a ideologia retêm primazia total: pode ser camuflada, transposta para outros conceitos (justiça, harmonia) mas mantêm a sua CENTRALIDADE.

O que queres que te diga?????

Mencionas as duas facetas ao mesmo tempo que as reduzes a uma ideologia comum que não é publicamente reconhecida.(a tal agenda profundamente liberal)

Non sequitur.

Simplificando, para ti, PSD e CDS guiam-se por uma agenda comum quando, para mim, não é o caso. Aliás, os próprios casos que TU mencionas demonstram claramente que não se trata apenas de uma agenda profundamente liberal.

Cumprimentos
Z

Anónimo disse...

desculpas

errata:

Não o dizes explicitamente mas é isto e só isto que se pode presumir. Se leres o teu próprio texto com atenção certamente perceberás que a premissa do texto é a de que a políticas deste governo, apesar das ofuscações deliberadas e instrumentais (apresentá-las como sendo orientadas por critérios de eficiência etc) dos actores políticos, é ditada principalmente pela ideologia. Isto é, se bem li o teu texto, a ideologia retêm primazia total: pode ser camuflada, transposta para outros conceitos (justiça, harmonia) mas mantêm a sua CENTRALIDADE.

Anónimo disse...

Pondo as coisas de forma ainda mais simples:

Pedro Mota Soares não se está a comportar como um político que aplica uma "agenda profundamente liberal."

Um neo-liberal simplesmente impediria todo e qualquer gasto injustificado pelo estado. Não gastaria um centavo com PPP's (deixava-lhes ir à falência) nem se comoveria com a condição dos idosos ou com a dos trabalhadores independentes.


Bateson, num célebre ensaio, escreveu uma frase simples e perspicaz: "O mapa não é o território." neste caso parece que tratas as ideologias como mapas mentais dos agentes políticos. Esta é uma visão SIMPLISTA da política contemporânea.


Melhores cumprimentos
ezequiel-Z

Anónimo disse...

"O que procuro mostrar no artigo é que os supostos casos contraditórios refletem, por um lado, uma ideologia liberal e, por outro, uma ideologia conservadora."


O que tu procuras mostrar no artigo é que a ideologia liberal e a conservadora não são duas mas apenas UMA. (uma agenda profundamente liberal TAMBÈM compartilhada pela direita conservadora)

isto não é descodificar coisa alguma. isto é ofuscação.

Anónimo disse...

e erras também na caracterização de Passos Coelho.

"E bem a propósito, nesta linha do conservadorismo político puro, foi também curioso ver Passos Coelho no Congresso do PSD Açores a falar na necessidade de “alterar estruturas económicas, políticas a sociais para que privilégios insjustificáveis não voltem a reposicionar-se na nossa sociedade”.


Seria "conservadorismo político (puro)" SE Passos Coelho tivesse dito que NÃO pretende alterar as tais estruturas e o carácter corporativista-estatista da nossa economia. O corte do RSI não é uma medida conservadora.

Anónimo disse...

Já agora, desculpa a insistência.


Como é que uma ideologia que é aplicada (liberalismo) em políticas concretas pode ser LATENTE????