O cenário do país é hoje conhecido de todos. Parece que finalmente começam a existir vastos consensos em torno da ideia de que a austeridade não só não é solução, como agrava ainda mais os males que se predispôe a atacar. Esta linha de pensamento já conseguiu até atingir os setores mais distantes, não deixando de ser curioso verificar que até em muitos setores da direita política, tal se tornou uma evidência da noite para o dia. A ideia de que “andámos a viver acima das nossas possibilidades” ainda não desapareceu, é certo. Não se pode ter tudo. Mas as consequências da auteridade tornaram-se claras até para as “pessoas simples” que Passos Coelho há uns meses atrás evocava.
Curiosamente, não é necessário fazer um grande exercício de memória para verificar que aquilo que é hoje evidente para muitas das vozes da nossa praça, não o era há apenas uns poucos meses atrás. Nas últimas eleições legislativas, quando a esquerda à esquerda do PS defendia a renogociação da dívida, era considerada radical e irresponsávelmente defensora do “calote”. Quando a esquerda à esquerda do PS defendia que a austeridade levaria inevitavelmente a um perigoso cenário recessivo, era considerada imobilista e defensora do estado das coisas. E podíamos recuar até aos tempos dos PEC para tornar esta situação ainda mais clara.
No que ao posicionamento perante a austeridade diz respeito, o que era antes considerado um reduto da esquerda mais à esquerda, generalizou-se completamente, o que é bom. E o próprio PS, num rápido passo de mágica, passou a ser o heroico partido da renegociação, do “assim não vamos lá”, do “temos de por termo à política recessiva em curso”. Como é mais do que sabido, os partidos do centro político possuem esta virtualidade: uma tremenda capacidade de, sem pestanejar, se adaptar ao meio envolvente e às ondas em curso.
No meio de todos estes reposicionamentos, quem tem razão desde o princípio não obtém naturalmente reconhecimento pela sua coerência. O sistema político democrático não está moldado para este tipo de reconhecimentos e, com certeza, não é tal reconhecimento que tira o sono a tais vontades. Fica apenas mais um de muitos registos de que é no jogo das evidências que se joga a coerência e, já agora, a lucidez política.
Artigo publicado ontem no Esquerda.net
Imagem: Where the hell am i
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