Será que a procura de coerência ideológica na política dos nossos dias é um acto condenado ao fracasso? Será razoável esperar-se que os actores políticos se movam por ideias concretas e por visões do mundo, e não apenas pela conquista do poder, custe o que custar, doa a quem doer? As perguntas acima, de tanto serem feitas, soam já a clichês e lugares comuns. A sua resposta pode, como é sabido, variar entre uma espécie de romantismo lírico que acredita que a política só vale a pena com total coerência e ideias claras, e um realismo extremo que considera a política como a busca pura e simples do poder.
É certo que as últimas décadas assistiram a profundas transformações no confronto político. O estratégico tende a assumir maior preponderância que o nuclear, a forma parece ganhar maior importância que o conteúdo. Tal implica que os actores políticos tendam a mover-se cada vez mais ao sabor das circunstâncias, originando desorientação e incompreensão por parte do eleitorado. Daí até ao alheamento e à famosa frase “são todos iguais” vai uma curta distância. E é no centro político, espaço onde as diferenças ideológicas são naturalmente ténues, que mais exemplos conseguimos encontrar. O caso português é elucidativo dada a conhecida particularidade do partido de centro-esquerda (PS) e do partido de centro-direita (PSD) se encontrarem excessivamente posicionados ao centro quando comparados com o que se passa noutros países europeus. Neste contexto, o seu dúbio posicionamento ideológico contribui para alguma confusão do eleitorado.
Peguemos então em episódios recentes para demonstrar tal realidade e uma vez que a economia está na ordem do dia, nada como aproveitar o referido tema. O posicionamento económico do actual governo de Sócrates é particularmente curioso. Tivemos uma fase inicial em que a redução do défice era o objectivo supremo. Subitamente, com o eclodir da crise financeira internacional, exaltou-se o papel do investimento público e do Estado na economia. Em seguida, com as pressões comunitárias, o discurso do défice regressou. O keynesianismo teve então de voltar para a gaveta e eis que, no âmbito do PEC, anuncia-se a privatização de um vasto leque de empresas públicas. O Estado voltou a deixar de ser importante na economia.
Mas vejamos também um exemplo recente dos sociais-democratas. Certamente embalados por uma espécie de patriotismo após uma agressão vinda do exterior, acabaram por embarcar na crítica ao ataque especulativo de que o país foi alvo na passada semana. Refrearam tal posicionamento com o argumento de que tal cenário deveu-se à desordem nas contas públicas. De qualquer modo, o liberalismo de Passos Coelho foi subitamente encoberto face à fúria nacional que se levantou contra as agências de rating, peças centrais do liberalismo que rege o sistema financeiro internacional.
E para terminar de forma elucidativa este texto sobre coerência ideológica, recordemos que, na mesma semana em que Portugal foi alvo de um ataque especulativo sem precedentes, uma sondagem colocou Passos Coelho - o líder mais liberal que o PSD teve nos últimos anos - à frente dos socialistas. Paradoxal, não é? É certo que o trabalho de campo da sondagem foi feito antes do ataque especulativo. Mas algo nos diz que não é necessária tal explicação para o suposto paradoxo. O eleitorado começa agora a desejar alguém que substitua Sócrates. Avaliar as ideias desse alguém se calhar já é pedir muito... E com tanta incoerência ideológica por parte dos partidos, alguém estaria à espera de encontrar congruência do lado do eleitorado?
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Artigo publicado ontem no Açoriano Oriental
1 comentário:
E onde entra o Manuel Alegre?
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