quarta-feira, 24 de março de 2010

Desorientação Ideológica

Apesar das recorrentes teorias que preconizam o enfraquecimento ou o fim da dicotomia esquerda-direita, continua a existir um relativo consenso de que tal oposição subsiste e que continua a fazer grande sentido nos dias de hoje. A política existe porque existem campos opostos, opções diversas, escolhas alternativas. Estas são agrupadas em campos dicotómicos mais ou menos coerentes, dos quais a oposição esquerda-direita se afirma como a historicamente mais reconhecida.

O posicionamento das forças políticas a nível de esquerda-direita não se faz de forma simplesmente dicotómica, mas sim num continuum que vai de um extremo ao outro extremo. É no centro político, zona onde se situa a maioria dos partidos com experiência de governabilidade, que maiores dificuldades de definição ideológica podem ser encontradas. Mas apesar do afastamento dos extremos implicar alguma nebulosidade ideológica, as qualificações de centro-direita e centro-esquerda utilizam-se precisamente para sublinhar ancoragens em determinado “lado da barricada”.

Em Portugal possuímos um centro político conhecido por ser excessivamente centrista. Ou seja, o partido de centro-direita (PSD) está demasiado à esquerda e o partido de centro-esquerda encontra-se demasiado à direita. A clivagem ideologica entre PS e PSD é reduzida quando comparada com outros sistemas partidários de referência a nível europeu. No fundo, trocado por miúdos, podemos dizer que há uma preocupante dose de verdade quando correntemente se afirma que “PS e PSD são iguais e defendem o mesmo”.

As raizes de tal fenómeno encontram-se sobretudo na transição para a democracia (1974-1976) e na forma como se estruturou o sistema de partidos. No caso do PS, o facto de se ter afirmado sobretudo por oposição às forças à sua esquerda pode ser apontado como um dos motivos para a sua limitada propensão de ancoragem à esquerda. Ao mesmo tempo que foi o partido responsável por algumas das medidas mais emblemáticas para a criação do Estado-providência em Portugal, não tem resistido a assumir um papel de destaque no desmantelamento do mesmo (p/ex: reforma das leis laborais, diminuição da presença do Estado na economia, abertura progressiva da educação e saúde ao sector privado).

O polémico Programa de Estabilidade e Crescimento agora apresentado é um exemplo paradigmático a este respeito. Os portugueses são hoje brindados com um suposto partido de centro-esquerda a concentrar a maior parte dos esforços de equilibrio das contas públicas na limitação das prestações sociais, no congelamento dos salários, na limitação das deduções fiscais e num amplo programa de privatizações. No fundo, um partido de centro-esquerda a actuar com uma linha indistinta da direita política. O PEC não só deixou naturalmente perplexos e incomodados alguns sectores no seio do próprio PS, como conseguiu o magnifico feito de colocar os partidos à direita a criticarem pela esquerda os socialistas.

Podemos sempre relativizar a importância dos conceitos de esquerda e direita tendo em conta os desafios da governação. E podemos até pensar que as dificuldades dos tempos actuais não se compadecem com pruridos ideológicos. Mas se considerarmos que, apenas seis meses depois de ter sido eleito, Sócrates propõe-se aplicar receitas diametralmente opostas às que prometeu aos seus eleitores, não possuindo desta vez sequer o álibi do desconhecimento da situação para justificar a sua actuação, percebemos então que a desorientação ideológica é “um bocadinho” mais grave em termos democráticos do que à partida pode parecer. .
.
Artigo publicado ontem no Açoriano Oriental

1 comentário:

Ana Paula Fitas disse...

Caro João Ricardo,
Vou fazer link. Obrigado.
Abraço.